Expedientes dilatórios - Autor: Hurray Vaynuh
É consensual que o estado
de direito surgiu na Inglaterra no ano de 1215, com a promulgação da Magna
Carta, que limitando o poder do rei estabeleceu, nomeadamente, que ninguém
podia ser privado dos seus direitos sem o devido processo legal.
O princípio foi
incorporado na constituição norte-americana pela 5.ª Emenda, tendo o United
States Supreme Court (USSC) raciocinado sobre o mesmo em várias situações,
ainda durante o século XIX, designadamente nos casos Barron vs. City of Baltimore (1833), Burlington & Quincy Railroad Company vs. City of
Chicago.
No caso Bi-Metallic Investment Co. vs. State
Board of Equalization (1915), o USSC sustentou que, se a questão que opunha o
Estado ao indivíduo fosse, não uma questão geral, mas uma questão particular,
este tinha o direito de apoiar as suas alegações por argumentos, por mais
breves que fossem, e de carrear as provas para esse fim, por mais informais que
fossem. Isto é, o USSC enfatizou que se o Estado age contra o indivíduo com
base em fundamentos individuais, então tem de o fazer sob a égide do devido
processo legal, o mesmo é dizer, tem de agir respeitando os direitos do indivíduo,
designadamente o seu amplo direito de defesa.
Vem isto a propósito da
notícia de que o Conselho Superior da Magistratura elaborou um documento em que
propõe dez medidas para resolver os atrasos e entorpecimento da justiça penal,
das quais se destaca a possibilidade de ser aplicada uma multa “colossal” aos
arguidos que usem de “expedientes dilatórios”, multa essa que no seu máximo
pode chegar a mais de 10.000 euros.
Como é evidente, sendo os
arguidos obrigatoriamente patrocinados por advogado, e sendo estes os autores
das peças processuais que àqueles são imputadas, é obvio que os verdadeiros
“visados” pela “medida” são os segundos e não os arguidos, embora estes acabem
por suportar (em regra) as consequências negativas para o seu património e para
o seu estatuto pessoal das posições que em seu nome os defensores assumam.
Curiosamente (ou talvez
não), o referido documento é omisso em relação às práticas inadequadas de
alguns magistrados judiciais que, por falta de zelo, dedicação e, muitas vezes,
por inépcia na prolação dos despachos de mero expediente, acabam por introduzir
dilações inesperadas e inexplicáveis nos processos que têm a seu cargo!
Outra curiosidade é do
referido documento do Conselho Superior da Magistratura, órgão de gestão da
magistratura judicial, ser produto do labor e saber jurídico de três juízes
desembargadores e de um procurador da república, ou seja, de quem decide e de
quem acusa…
Por isso, como os
advogados são, obrigatoriamente, figuras incontornáveis no processo penal,
muita perplexidade causa terem sido excluídos de tal grupo de trabalho … A não
ser que a solução adotada resulte de alguma veneração do CSM pela justiça da
idade média, em que o juiz assumia os papéis de investigador, inquisidor,
acusador e julgador, época que, de facto, se caracterizava por uma justiça
muito célere, mas também muito injusta…
Não sendo evidentemente esse
o caso – queremos acreditar que não o seja – então a exclusão dos advogados só
pode ser explicada pela, certamente, muito elevada competência técnico-científica
e experiência de quem integrou o grupo, que dispensava qualquer outro
contributo, designadamente do lado da defesa, mormente na consolidação dos
direitos de defesa e da prevenção de decisões concretamente injustas.
Mas que importa a
injustiça do caso concreto se quem decide não lhe sofre as consequências?
De facto, é fácil falar
em expedientes dilatórios quando se não é atingido, por exemplo, por decisões
surpresa, por negação de produção de prova inquestionavelmente necessária ao
exercício de uma boa defesa, pela entorse no ritual processual sem outra
justificação que não seja fragilizar a posição do arguido… Normalmente, quem
muito esgrime o argumento do “expediente dilatório” é quem, por exemplo, nunca
sofreu os efeitos da violação do juiz natural na distribuição de processos e se
viu “censurado” por ousar questionar tal violação, embora a mesma exista e seja
indesmentível, pese embora as artimanhas argumentativas que se usam para a
camuflar, como sucedeu, precisamente, com um certo processo mediático…
Sejamos claros: são
usados expedientes dilatórios no processo penal português? Claro que sim! É
devido a eles que os processo se atrasam e nalguns casos os crimes prescrevem?
Claro que não!
De facto, os expedientes
dilatórios – isto é, o uso abusivo de uma forma processual, apenas com o único
intuito de retardar a marcha do processo – são residuais; a maioria do que
afoitamente se apelida de “expediente dilatório” não passa de uma reação legítima,
do mais natural exercício de direito de defesa contra o abuso judicial na
aplicação da lei, reação essa que é apanágio de todos os ordenamentos jurídicos
onde vigora o Estado de Direito, sem a qual o processo penal não passa de uma
pálida imagem do due process of law.
Este princípio,
fortemente enraizado tanto no direito anglo-saxónico como no direito
continental, está plasmado em instrumentos de direito internacional, que se
aplicam no ordenamento jurídico português por via constitucional. Aliás, está
refletido no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa.
Portanto, em vez de alijar as suas próprias culpas nos atrasos (de alguns
casos) da justiça penal, atribuindo-a à famigerada figura do “expediente
dilatório”, melhor fora, ou seria, que o CSM encomendasse um estudo sobre a
figura do processo equitativo e a sua aplicação prática, designadamente na
condução dos processos penais, na produção de prova e no ritualismo processual.
Hurray Vaynuh
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