O Juiz e o Cérebro Preditivo: da Inteligência Emocional à Emoção Construída

A emoção não é uma reação, é uma construção.” - Lisa Feldman Barrett

Cérebro e mente são inseparáveis: pensar e sentir são redes entrelaçadas.” - Luiz Pessoa

Um juiz emocionalmente inteligente não é o que não sente, mas o que sabe o que sente.” - Terry A. Maroney

Não somos seres racionais que sentem, mas seres emocionais que pensam.” - António Damásio


I. Da inteligência emocional à neurociência do julgar

Durante décadas, a “inteligência emocional” foi o conceito preferido para abordar a relação entre emoção e decisão. Terry Maroney, professora de Direito e investigadora em Vanderbilt, cristalizou essa ponte em The Emotionally Intelligent Judge, defendendo que a imparcialidade não se constrói contra a emoção, mas através da sua gestão consciente.

Contudo, a ciência cognitiva deu um passo além. O que antes era um problema de self-control é hoje entendido, à luz da Theory of Constructed Emotion (Barrett) e do modelo do cérebro preditivo (Friston), como um processo de interpretação inferencial da realidade.

O juiz não é apenas alguém que sente, é um cérebro que prevê e corrige hipóteses sobre o mundo.
A imparcialidade deixa de ser uma virtude emocional e torna-se uma competência neurocognitiva, dependente da capacidade de revisão das próprias previsões afetivas.


II. O juiz como cérebro preditivo

O modelo preditivo parte de uma ideia simples e disruptiva:

o cérebro não reage ao mundo, prevê o mundo.

Em vez de processar dados passivamente, o cérebro formula hipóteses sobre o que vai acontecer e testa-as a cada instante.
O erro de previsão é o motor da perceção e da aprendizagem.

No tribunal, isso significa que o juiz não observa de modo neutro, mas infere comportamentos com base em modelos internos, formados por cultura, experiência, convicções e estado corporal.
Um olhar, um silêncio ou uma expressão facial não comunicam verdade, apenas disparam previsões que o cérebro interpreta como tal.

O julgador imparcial não é o que observa sem emoção, mas o que reconhece a natureza preditiva da própria observação.

Luiz Pessoa demonstrou que emoção e cognição são funções entrelaçadas, integradas nas mesmas redes neuronais.
A emoção não é ruído no pensamento; é o seu substrato fisiológico.


III. Emoção, cognição e o realismo afetivo

O “realismo afetivo” (Barrett; Pessoa) descreve a tendência do cérebro para atribuir às coisas externas o que sente internamente.
Se o corpo do juiz está em tensão, o arguido pode parecer mais agressivo. Se está fatigado, o mesmo depoimento soa menos credível.

Emoções são, portanto, interpretações corporificadas, não reflexos universais.
A TCE demonstra que não existem circuitos específicos ou expressões faciais invariáveis para a raiva, o medo ou a culpa.

As emoções são categorias cognitivas construídas, não sinais objetivos a decifrar.

O juiz informado por esta ciência abandona a ilusão de “ler” emoções e reconhece que só pode interpretá-las.
Daqui decorre um imperativo: não se pode inferir intenção, arrependimento ou dolo a partir da aparência emocional.


IV. O corpo do juiz como instrumento de justiça

O corpo é parte do tribunal.
Cada batimento, respiração ou tensão muscular modula o padrão preditivo do cérebro e altera a forma como percebemos os outros.

A interocepção - perceção dos estados corporais internos - influencia diretamente o juízo.
Um juiz consciente do seu estado fisiológico está melhor equipado para reconhecer enviesamentos.

“O corpo não é um obstáculo à razão; é a base biológica da racionalidade.”
- Luiz Pessoa, The Entangled Brain

Ignorar a dimensão corporal é abdicar de compreender metade do processo decisório.
A imparcialidade é, também, uma prática somática.


V. Regulação emocional e reconstrução preditiva

Terry Maroney via na emotion regulation a competência-chave da magistratura.
Lisa Feldman Barrett vai mais fundo: regular emoção é reconstruir previsão.

A emoção é uma hipótese do cérebro sobre o que está a acontecer.
Regular não é suprimir, mas recontextualizar a hipótese que originou a emoção.

Quando o juiz sente irritação perante uma testemunha evasiva, a resposta madura não é “não sentir”, mas rever a previsão que gerou a irritação:

“Estou a antecipar desonestidade, mas posso estar apenas a reagir à minha frustração.”

Três pilares estruturam esta regulação preditiva:

  • Consciência interoceptiva: notar o próprio corpo antes de julgar o alheio.

  • Reavaliação contextual: gerar interpretações alternativas e probabilísticas.

  • Distanciamento empático: manter ligação sem fusão emocional.

Julgar é um exercício de reavaliação preditiva: corrigir o erro emocional antes de o converter em sentença.


VI. Neutralidade, empatia e ética da interocepção

A neutralidade absoluta é um mito.
Todo o cérebro julga a partir de estados emocionais e corporais.
O que diferencia o juiz maduro é a consciência ética dessa inevitabilidade.

A empatia, segundo Barrett e Pessoa, não é sentir o mesmo que o outro, mas ampliar o repertório de hipóteses sobre o que o outro sente.
O juiz empático é aquele que considera múltiplas interpretações antes de fixar o juízo.

A verdadeira neutralidade é cognitiva, não afetiva.

A ética da interocepção reconhece que o corpo e a emoção participam ativamente no ato de julgar - e que a imparcialidade se constrói a partir desse reconhecimento.


VII. Formação judiciária para o século XXI

Nos Estados Unidos, a Federal Judicial Center e a National Judicial College já integram módulos de formação em neurociência, emoção e tomada de decisão.
Em Portugal, este diálogo ainda está por nascer.

O ensino jurídico tradicional continua a tratar a emoção como ruído.
Mas a neurociência contemporânea demonstra que sem emoção não há cognição, e sem corpo não há imparcialidade.

“A justiça não é uma máquina de aplicar leis, mas um processo biológico de previsão humana.”
- L. F. Barrett (interpretação livre)

Incorporar nos currículos judiciais temas como neurobiologia da decisão, viés cognitivo e interocepção judicial é crucial para uma justiça mais consciente, previsível e humana.


VIII. Conclusão

Do modelo de Maroney (gestão emocional) ao de Barrett (construção emocional) decorre uma revolução silenciosa.
O juiz do futuro não será o que domina as emoções, mas o que compreende a sua inevitabilidade biológica e cognitiva.

Cada julgamento é uma hipótese afetiva sobre o mundo.
A justiça começa quando o cérebro reconhece o erro das suas próprias previsões.


Sobre a autora citada

Lisa Feldman Barrett é professora de Psicologia na Northeastern University, investigadora do Massachusetts General Hospital e da Harvard Medical School, membro da National Academy of Sciences dos EUA e uma das cientistas mais citadas do mundo.
A sua Theory of Constructed Emotion transformou a compreensão científica do sentir, pensar e julgar.

Mais sobre a autora ver "O Cérebro que Julga Sentido: Como Lisa Feldman Barrett Reconstruiu as Emoções e Desafiou os Tribunais em How Emotions Are Made".


Sobre o autor

Miguel Pereira é advogado, estudioso e divulgador da interseção entre neurociência e direito.
Autor da série “Primado do Direito”, publicada no jornal Página Um, e do projeto “Reasonable Doubt”, onde também explora as relações entre cognição, emoção e justiça penal.


Mais publicações deste âmbito e de outros em Reasonable Doubt 

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