Portugal, o País do Respeitinho: Quando a Crítica É Crime
“Em democracia, o poder não é para ser reverenciado, é para ser escrutinado.”
I. A ironia da democracia punitiva
Portugal continua a ser apontado como um dos países mais seguros e pacíficos do mundo. Mas no domínio da liberdade de expressão, o retrato é bem menos idílico.
Segundo os dados oficiais do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), o país encontra-se entre os dez Estados mais condenados da Europa por violar o artigo 10.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, que protege o direito à liberdade de expressão.
E há um padrão inquietante: as condenações portuguesas dizem demasiadas vezes respeito a críticas dirigidas a magistrados, procuradores ou instituições da Justiça. Ou seja, àqueles que, num Estado de Direito, deveriam ser os primeiros a aceitar o escrutínio público.
II. Os números que envergonham uma democracia
De acordo com os dados oficiais do TEDH compilados até 2025:
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Portugal ocupa o 8.º lugar no ranking europeu de violações do artigo 10.º (28 condenações acumuladas entre 1959 e 2021).
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Nos últimos anos, a situação agravou-se: 3 violações em 2022, 5 em 2024, e já 2 em 2025.
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Ficamos assim acima de países como Hungria, Polónia ou Azerbaijão, frequentemente criticados por tendências iliberais - e muito acima de democracias maduras como França, Alemanha ou Reino Unido.
Em 2025, apenas a Turquia e a Rússia continuam a liderar este triste campeonato.
Portugal, paradoxalmente, surge logo a seguir - um “aluno exemplar” da União Europeia com estatísticas de liberdade de expressão dignas de regimes autoritários.
III. Quando o poder judicial não tolera o escrutínio
O TEDH tem sido claro e repetitivo: num Estado democrático, os limites da crítica são mais amplos quando estão em causa figuras públicas, magistrados ou instituições do Estado.
Ainda assim, os tribunais portugueses persistem em decisões que criminalizam a crítica, transformando o debate público em matéria de ofensa pessoal.
▪ Freitas Rangel v. Portugal (n.º 78873/13, acórdão de 11 de janeiro de 2022)
O jornalista Freitas Rangel foi condenado por declarações críticas sobre a Associação Sindical de Juízes Portugueses e o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público.
O TEDH entendeu que as expressões usadas se inseriam num debate de interesse público sobre o funcionamento da Justiça, e que a condenação imposta era desproporcionada e dissuasora do livre exercício da advocacia.
Resultado: violação do artigo 10.º.
▪ Costa Figueiredo v. Portugal (n.º 6928/19, acórdão de 14 de outubro de 2025)
Professor, autarca e jornalista, Luís Figueiredo foi condenado pelos tribunais portugueses e obrigado a pedir desculpa públicas a um juiz e a um procurador.
O TEDH considerou a decisão incompatível com os princípios democráticos, sublinhando que as instituições judiciais devem ter uma margem de tolerância acrescida à crítica.
Conclusão: nova violação do artigo 10.º e condenação de Portugal ao pagamento de 7.610 € em custas e despesas.
Em todos estes casos, o denominador comum é o mesmo: quem critica o poder judicial é punido; quem é criticado é protegido.
IV. A herança do “respeitinho”
Portugal é, ainda hoje, um país profundamente marcado por uma cultura de reverência à autoridade.
Durante o Estado Novo, o “respeitinho” era valor cívico e virtude patriótica.
Quase meio século depois da Revolução de Abril, parece persistir - sobretudo nos corredores da Justiça - uma mentalidade autoritária travestida de legalidade, em que o poder judicial se confunde com o próprio Estado.
“Criticar o poder judicial em Portugal continua a ser um ato de coragem, não um direito.”
A liberdade de expressão é, por definição, o direito de dizer o que incomoda.
Quando o incómodo atinge quem exerce poder, é precisamente aí que a democracia se mede.
Mas em Portugal, o discurso crítico sobre magistrados ou outros representantes do poder judicial continua a ser tratado como “blasfémia institucional”.
V. O contraste americano: crítica sem medo
Enquanto em Portugal se punem professores e jornalistas por comentários sobre juízes, nos Estados Unidos, programas televisivos como Last Week Tonight with John Oliver fazem, sem receio, críticas ferozes a juízes do Supreme Court - como o Justice Clarence Thomas, acusado em 2024 de conflitos éticos e favoritismo político.
Lá, ninguém é condenado por “ofensa à honra” de um magistrado; a sátira é reconhecida como expressão política protegida pela Primeira Emenda.
Não se trata de comparar sistemas jurídicos, mas de medir níveis de maturidade democrática.
O que lá é visto como liberdade de crítica, cá continua a ser crime de desrespeito.
VI. Entre o medo e o direito de dizer
Os números do TEDH não mentem.
Em matéria de liberdade de expressão, Portugal é reincidente.
E o mais grave é que as condenações não produzem mudança, apenas embaraço diplomático e silêncio interno.
Enquanto os tribunais nacionais continuarem a confundir crítica com difamação, e honra institucional com imunidade ao escrutínio, o país permanecerá preso a um paradigma autoritário, incompatível com a maturidade democrática que proclama.
A liberdade de expressão não é o direito de agradar - é o direito de incomodar.
E quando o incómodo é punido, é a democracia que está em perigo.
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