Os Sentidos Invisíveis: porque continuamos a acreditar em Aristóteles e como o cérebro moderno nos mostra que o Mundo é muito mais do que cinco portas de entrada
Há ideias que atravessam séculos inteiros com tal serenidade que quase nos esquecemos de perguntar se ainda fazem sentido. A de que temos cinco sentidos é uma dessas ideias. Todos aprendemos na escola, sem grande contestação, que o ser humano vê, ouve, cheira, saboreia e toca. A simplicidade desta lista é tão sedutora que parece quase ofensivo questioná-la. Cinco. Um número redondo, confortável, fácil de memorizar. E, no entanto, quase tudo na ciência moderna nos diz que esta visão do corpo humano é uma construção antiquada que ficou presa no tempo em que a observação a olho nu era a nossa única ferramenta de investigação.
A verdade é que a ideia dos cinco sentidos nunca foi mais do que uma classificação intuitiva feita numa época em que não existia microscopia, eletrofisiologia, imagiologia cerebral, psicofísica ou qualquer forma de medir aquilo que realmente se passa dentro da pequena "caixa negra" que é o nosso crânio. Usamos esta caixa todos os dias, embora não possamos olhar diretamente para o que ela faz, e dependemos de um conjunto enorme de canais sensoriais que a ligam ao Mundo. Ainda assim, insistimos em explicar essa complexa arquitetura biológica com uma lista simplificada que nasceu na Grécia Antiga.
Neste texto vamos desmontar essa lista, não por um qualquer capricho, mas porque compreender a verdadeira estrutura dos sentidos é compreender como o cérebro constrói a realidade. Não são cinco sentidos. São muitos mais. Talvez doze, talvez vinte, talvez trinta, dependendo de como escolhemos contar. A boa notícia é que esta diversidade não complica a vida, antes revela a profundidade extraordinária da máquina perceptiva humana. A má notícia é que nos obriga a abandonar crenças confortáveis. Mas vale a pena. Porque quanto mais percebemos como os sentidos funcionam, melhor percebemos como pensamos, como sentimos e até como discutimos com quem vive connosco.
1. A origem do mito dos cinco sentidos e a sedução da simplicidade
A ideia dos cinco sentidos vem de Aristóteles e do seu tratado De Anima. Aristóteles tinha um talento raro para organizar o Mundo com base no que era observável sem instrumentos. Olhar para um objecto é diferente de cheirar uma flor, que é diferente de saborear um fruto. Aristóteles deduziu que estas diferenças eram suficientes para compor categorias distintas, cada uma correspondente a uma função sensorial. Visão para a luz, audição para o som, olfato para os odores, paladar para os sabores, tato para as sensações no corpo.
Esta classificação cumpria um propósito intelectual brilhante para o século quarto antes de Cristo. Permitia descrever o comportamento humano de forma sistemática e facilitava o ensino. O problema é que a simplicidade enganou-nos. A tradição ganhou força. A escola medieval perpetuou a ideia. A pedagogia moderna tornou-a uma espécie de dogma infantil. A ciência contemporânea mostra que os sentidos não se organizam segundo categorias intuitivas, mas segundo mecanismos fisiológicos. E estes mecanismos são muito mais numerosos do que cinco.
A sobrevivência deste mito tem uma explicação cognitiva clara. O cérebro humano gosta de padrões simples e desconfia de classificações que introduzem demasiadas variáveis. Cinco categorias são fáceis de ensinar. Cinco categorias são fáceis de memorizar. O problema é que não correspondem à realidade fisiológica.
A pergunta legítima é: se a ciência já sabe que existem muitos mais sentidos, porque continuamos a dizer às crianças que são cinco? A resposta é desconfortavelmente pragmática. É mais fácil ensinar cinco do que quinze ou vinte. É mais fácil manter o mito do que reformular todo o currículo. Mas essa facilidade tem custos. É pedagógica, mas não é verdadeira. E a missão deste texto é precisamente devolver um pouco de verdade ao tema.
2. Quando tentamos contar os sentidos, o número deixa de ser óbvio
Uma das primeiras coisas que qualquer neurocientista explica quando se fala em sentidos é que não existe consenso total sobre como contá-los. A questão não é discutir se são cinco ou seis. A questão é decidir o que entendemos por sentido.
Um sentido é um canal de transdução, isto é, um mecanismo biológico que converte um tipo de energia do ambiente ou do corpo num sinal neural que o cérebro consegue interpretar. A visão converte ondas eletromagnéticas. A audição converte vibrações do ar. O olfato converte moléculas voláteis. Estas três modalidades são relativamente fáceis de identificar. Mas o que fazemos com os receptores térmicos da pele? E com os receptores de pressão profunda nos músculos? E com os sensores químicos que monitorizam os níveis de dióxido de carbono no sangue? E com o sistema vestibular no ouvido interno, que deteta aceleração e orientação? São sentidos? São subtipos? São modos especializados de transdução? A resposta depende da taxonomia utilizada.
Por esta razão, diferentes autores apresentam listas com números muito distintos. Alguns preferem agrupar tudo em grandes famílias: exterocepção, interocepção, propriocepção, nestas três já cabem quase todas as modalidades. Outros preferem distinguir cada tipo de receptor como um sentido autónomo. Isto leva a listas com vinte, trinta ou até cinquenta entradas. A ciência não está dividida sobre o funcionamento dos receptores, está dividida sobre qual o melhor critério de classificação. É uma diferença importante.
Assim, dizer que temos cinco sentidos é semelhante a dizer que o oceano tem duas cores porque o vemos azul e verde. É uma descrição perceptualmente útil, mas fisiologicamente falsa.
3. Para compreender o mundo sensorial, precisamos de abandonar o mapa antigo
Antes de avançarmos para a lista moderna, convém esclarecer uma ideia fundamental. Os sentidos não são janelas por onde o mundo entra. São canais de informação que o cérebro interpreta de acordo com modelos internos. Esta distinção é crítica, porque a maior parte das pessoas imagina os sentidos como simples captações passivas de realidade. O que entra pelo olho seria a realidade tal como ela é. O que entra pela pele seria a sensação tal como o corpo a produz. Nada disto é verdade.
O que o cérebro recebe são padrões elétricos. Nada mais. Nunca vemos luz directamente, apenas interpretamos padrões elétricos gerados por fotoreceptores que reagiram à luz. Nunca ouvimos som directamente, apenas interpretamos disparos neuronais causados por vibrações mecânicas no ouvido interno. Nunca sentimos directamente a temperatura externa, apenas interpretamos as activações dos receptores térmicos distribuídos pela pele.
Tudo o que chega ao cérebro é convertido em sinais que são interpretados segundo expectativas, memórias, modelos probabilísticos e inferências. Isto significa que os sentidos são portais, não janelas. Não deixam o mundo entrar tal como ele é, apenas traduzem propriedades físicas num código que o cérebro sabe decifrar.
E é precisamente por isto que precisamos de conhecer os sentidos modernos: porque eles explicam como o cérebro constrói o mundo sentido.
4. Os grandes grupos modernos de sentidos
A seguir vamos organizar os sentidos de forma intuitiva, mas correcta, sem a simplicidade artificial dos cinco de Aristóteles e sem a complexidade de quem propõe listas com quarenta modalidades. Procuramos um equilíbrio pedagógico e científico. Vejamos então os grandes grupos.
Visão
Deteta luz, cor, movimento, profundidade e inúmeras variações produzidas pela adaptação da retina e pelo processamento cortical. É o sentido mais rico em volume de dados e o mais dominante na vida humana.
Audição
Deteta vibrações do ar, amplitude, frequência, direcção e harmónicos. Permite comunicação, localização espacial e antecipação temporal.
Olfato
Deteta moléculas voláteis. Comunica rapidamente com redes neuronais que integram emoção e memória, razão pela qual um cheiro pode desencadear recordações intensas ou reacções afectivas imediatas.
Paladar
Deteta sabores básicos como doce, salgado, ácido, amargo, umami, gordura e possivelmente outros. Funciona sempre em conjunto com o olfato.
Tato
Inclui pressão, vibração, textura e contacto. Mas na realidade o tato não é um sentido único, é uma família inteira de receptores mecânicos.
Termocepção
Deteta frio e calor. A criopercepção é parte deste sistema. A distinção entre frio e quente depende de receptores diferentes.
Nocicepção
Deteta dano tecidular e potencial ameaça. A dor não é um sentido, é uma construção interpretativa gerada a partir de sinais nociceptivos. O cérebro decide quando algo deve ser sentido como dor.
Propriocepção
É um dos sentidos mais importantes e menos reconhecidos. Diz ao cérebro onde está cada parte do corpo, que velocidade se move, que força está a ser aplicada. Permite andar sem olhar para os pés. Permite abrir uma porta sem ver a mão.
Interocepção
É o sentido mais revolucionário da ciência contemporânea das emoções. Deteta o estado interno do corpo, como batimentos cardíacos, respiração, tensão visceral, fome, sede, alterações hormonais, microflutuações de temperatura interna, distensão orgânica e muito mais. A interocepção é a base das emoções construídas, como defende Lisa Feldman Barrett.
Vestibular
Deteta equilíbrio, aceleração, inclinação da cabeça, rotação e orientação gravitacional. É o sistema que nos diz se estamos de pé, deitados, em movimento ou em queda.
Quimiossensação interna
Deteta níveis de oxigénio, dióxido de carbono, alterações do pH sanguíneo e composição química interna. São sensores de sobrevivência.
A partir desta lista já compreendemos que somos seres sensoriais muito mais complexos do que a tradição nos dizia. Mas para compreender profundamente esta complexidade precisamos de olhar com mais atenção para três sentidos que moldam quase todas as dimensões da nossa vida.
A riqueza deste conjunto de sentidos torna-se ainda mais evidente quando olhamos para resultados experimentais recentes. Num estudo de 2025, investigadores da Queen Mary University of London mostraram que humanos conseguem detetar objetos enterrados na areia antes de lhes tocar fisicamente. O tato não funciona como um simples contacto, funciona como um sistema exploratório que combina pressões, vibrações, deslocação do material e expectativa motora. O cérebro interpreta microvariações mecânicas produzidas pelo movimento do dedo através do meio granular e antecipa que algo sólido está à frente mesmo sem contacto direto. Estes resultados reforçam uma ideia central, a de que cada sentido é um conjunto de mecanismos especializados e que a percepção não é uma fotografia fiel do mundo, é uma conclusão construída a partir de sinais fragmentados.
5. Três sentidos invisíveis e decisivos
Interocepção: o sentido que dá corpo às emoções
É impossível compreender a experiência humana sem compreender a interocepção. Este sentido monitoriza o estado fisiológico interno. É o sistema que informa o cérebro sobre o ritmo cardíaco, a intensidade da respiração, a temperatura interna, o nível de energia, a tensão dos músculos, o estado dos intestinos e centenas de variações internas.
A importância disto é simples: as emoções não são respostas automáticas a estímulos externos. São construções baseadas no modo como o cérebro interpreta as sensações corporais internas. Quando sentimos ansiedade, muitas vezes não estamos a reagir ao mundo, estamos a reagir ao aumento da frequência cardíaca ou à alteração da respiração. Quando sentimos irritação, podemos estar a reagir à descida de glicose. Quando sentimos calma, o corpo pode simplesmente estar num estado de baixa variabilidade fisiológica.
A interocepção é o maior portal sensorial que a ciência do século vinte e um nos revelou.
Propriocepção: o mapa invisível do corpo
A propriocepção permite ao cérebro saber onde está o corpo sem precisar de olhar. A cada microsegundo, receptores nos músculos, tendões e articulações enviam informação sobre posição, tensão, ângulos e movimento. É por isso que conseguimos agarrar algo sem olhar para a mão. É por isso que conseguimos caminhar com naturalidade. É por isso que fechamos os olhos no banho e continuamos a saber onde está o braço.
Sem propriocepção, a experiência corporal desintegra-se. Pessoas com neuropatias proprioceptivas têm de olhar para cada parte do corpo para conseguir mover-se. É um dos sentidos mais fundamentais e mais negligenciados.
Termocepção e criopercepção: a relação entre o corpo e o ambiente térmico
A termocepção deteta mudanças de temperatura. Os receptores de frio e os de calor são distintos e funcionam de forma independente. Este sentido é essencial para a homeostase e para a sobrevivência. A criopercepção, embora pareça trivial, tem um papel crítico no modo como regulamos o comportamento. Sensação de frio afecta emoções, decisões e memória corporal.
6. O cérebro preditivo e o papel dos sentidos na construção da realidade
Agora que já percebemos a diversidade sensorial, precisamos de esclarecer a mecânica que lhes dá vida. O cérebro não espera pacientemente que os sentidos enviem informação. Ele antecipa constantemente o que espera sentir. Esta antecipação é conhecida como modelo preditivo. Quando a informação dos sentidos confirma o modelo, tudo segue sem esforço. Quando não confirma, o cérebro produz um sinal chamado erro preditivo.
A verdadeira função dos sentidos não é fornecer uma fotografia do mundo, é actualizar o modelo interno sempre que algo não é como o esperado. Por isso, os sentidos são mecanismos de correção. Não são um espelho do mundo, são sistemas de actualização.
Este processo de previsão e actualização é conhecido como inferência ativa. O cérebro prevê, compara, corrige, ajusta, prevê novamente. Assim interpreta a informação sensorial. Assim constrói a realidade.
7. O impacto disto na vida quotidiana
Quando compreendemos esta arquitetura sensorial deixamos de ver as diferenças de percepção como falhas pessoais. Compreendemos que os sentidos variam entre pessoas. Compreendemos que o cérebro interpreta emoções com base no corpo. Compreendemos que discussões sobre o que alguém viu ou sentiu são muitas vezes diferenças nos modelos internos, não erros morais.
A compreensão dos sentidos ajuda-nos a entender conflitos, memórias divergentes, percepções distintas e até decisões precipitadas. Ajuda-nos a reconhecer que somos seres sensoriais complexos, não robots com câmaras fotográficas.
8. Conclusão: compreender os sentidos é compreender a natureza humana
Abandonar a ideia dos cinco sentidos não é complicar o Mundo, é aproximarmo-nos dele com mais humanidade. É aceitar que a mente humana é moldada por dezenas de canais sensoriais e pela forma como o cérebro interpreta esses canais. É perceber que sentir é um processo construído, não um reflexo automático. É reconhecer que o corpo e o cérebro são sistemas integrados que produzem a experiência subjectiva da realidade.
Compreender isto é dar um passo em direção a uma cidadania mais consciente, a relações humanas mais compassivas e a uma sociedade mais crítica e mais informada. Porque no fim, os sentidos não são apenas portais biológicos, são a base da nossa ligação ao Mundo e a base de quem somos.
Miguel Pereira - Reasonable Doubt
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