A Impossibilidade de Uma Só Natureza Humana: Variação é a Norma

 

I – INTRODUÇÃO

A ideia de que existe uma natureza humana única, estável e relativamente homogénea domina grande parte do imaginário jurídico, filosófico e até científico do século XX. Atribuímos aos outros uma arquitetura psicológica semelhante à nossa, supomos que reconhecemos emoções com um simples olhar, acreditamos que percepções e memórias funcionam de modo uniforme nas diferentes pessoas e culturas. Esta suposição de universalidade, confortável e intuitiva, funciona como a gramática subterrânea de múltiplos discursos normativos: do direito ao quotidiano, da política à educação.

Contudo, a investigação contemporânea em neurociência, psicologia cultural, antropologia e ciências cognitivas sucessivamente desmente esse pressuposto. O que a literatura científica revela, com uma consistência impressionante, é algo distinto: variação é a norma. O cérebro humano, longe de ser uma máquina padronizada, é um sistema plástico que se forma e transforma em diálogo estreito com a cultura, a história individual e as pressões sociais que o enquadram. Não existe um modelo único de mente, nem um catálogo fixo de emoções, nem uma forma universal de interpretar o mundo. Existem, antes, muitas naturezas humanas, plurais e contextualmente moldadas.

Esta constatação não inaugura uma crise epistemológica. Pelo contrário, abre a possibilidade de compreender a espécie humana com maior precisão e rigor empírico. A ciência contemporânea aproxima-se cada vez mais da conclusão de que a diversidade comportamental, emocional e cognitiva não é ruído a eliminar ou excepção a tolerar. É material constitutivo da própria vida mental. Quando o direito, a política ou a moral partem do pressuposto de que todos percebem, sentem e agem com base no mesmo repertório de mecanismos, partem de uma premissa falsa. E uma premissa falsa, ainda que bem-intencionada, produz modelos explicativos frágeis, interpretações enviesadas e julgamentos errados.

O presente ensaio tem um objetivo simples e ao mesmo tempo ambicioso: expor de forma clara, rigorosa e empiricamente fundamentada as razões científicas pelas quais não podemos falar de “a” natureza humana, mas sim de múltiplas naturezas humanas. Será um percurso interdisciplinar, apoiado nos contributos de Lisa Feldman Barrett, Luiz Pessoa, James Russell, Joseph Henrich, Robert Sapolsky, Daniel Yon, Christoph Teufel e outros autores centrais. Não se trata de propor uma teoria alternativa unificada sobre como o ser humano funciona. Trata-se de mostrar que a própria ideia de funcionamento uniforme é cientificamente insustentável.

O argumento desenvolve-se em quatro etapas. Primeiro, analisaremos como o cérebro humano, longe de decifrar o mundo de forma directa, constrói percepções e emoções a partir de processos preditivos e de aprendizagem cultural. Segundo, examinaremos as implicações desta construção para a diversidade emocional: não apenas diferentes culturas categorizam emoções de modos distintos, mas indivíduos dentro da mesma cultura sentem e expressam emoções de forma idiossincrática. Terceiro, mostraremos como esta variação se estende a domínios cognitivos fundamentais, desde a atribuição de estados mentais à memória, passando pela percepção e pela tomada de decisão. Por fim, veremos como traços individuais, estilos cognitivos e dinâmicas sociais interagem para produzir padrões comportamentais profundamente distintos, impossíveis de integrar numa definição singular de “ser humano”.

Ao longo das últimas décadas, a investigação avançou com uma força acumulada que dificilmente permite regressos nostálgicos ao universalismo psicológico. O corpo de evidência é robusto: cérebros diferentes, em corpos diferentes, inseridos em histórias diferentes, produzem mundos mentais diferentes. Se isto é verdade, e os dados indicam que é, então o mais prudente é abandonar as ficções reconfortantes e adoptar um quadro interpretativo mais compatível com a ciência contemporânea. Um quadro onde a diversidade não é uma anomalia, mas a matéria-prima da condição humana.

A ideia de que existe uma natureza humana única, estável e previsível colide de frente com a própria lógica da evolução. Desde Darwin que sabemos que a variabilidade não é um ruído incômodo à volta de um padrão ideal, é a condição de possibilidade da vida tal como a conhecemos. Sem diferenças entre organismos, não haveria sobre o que a selecção natural pudesse operar, não haveria adaptação, não haveria história evolutiva. Se cada geração reproduzisse a anterior como uma cópia quase perfeita, o mais pequeno choque ambiental teria sido suficiente para extinguir a espécie.

Quando olhamos para o ser humano com esta lente, a noção de uma pessoa normal deixa de fazer sentido. Aquilo a que chamamos normalidade não é uma essência, é uma estatística. É a forma como uma certa sociedade, num certo momento histórico, decide desenhar uma curva em torno de fenómenos que são intrinsecamente diversos. A diversidade comportamental, cognitiva e emocional não é um acidente, é o mecanismo através do qual a espécie humana se adaptou, se transformou e sobreviveu. A biologia não promete estabilidade, promete variação.

A ciência contemporânea do cérebro, tal como tem sido sintetizada por autores como Daniel Yon, apenas reforça esta intuição evolutiva. A variabilidade não se limita à morfologia do corpo, atravessa o tecido neuronal e manifesta-se na forma como percebemos, prevemos, sentimos e decidimos. Não há dois cérebros organizados exatamente da mesma forma, não há duas histórias de desenvolvimento nervoso idênticas, não há dois percursos de aprendizagem coincidentes. Mesmo gémeos monozigóticos, criados no mesmo ambiente, divergem na forma como respondem ao stress, ao risco, ao conflito, ao apego, à perda. A ideia de que é possível falar de “a” natureza humana no singular é, do ponto de vista evolutivo, uma contradição nos seus próprios termos.

Se aceitarmos com seriedade esta perspectiva, desaparece o fundamento para todas as afirmações que pressupõem uma reacção humana típica às situações da vida. Não faz sentido dizer que qualquer pessoa reagiria “assim ou assado” diante da ameaça, do luto, da humilhação ou da acusação. O que existe é um leque de respostas possíveis, moduladas por factores genéticos, experiências precoces, cultura, contexto social, condições materiais, estados fisiológicos momentâneos e histórias de vida únicas. O que Darwin e os seus herdeiros intelectuais nos lembram é simples e desconfortável, a espécie humana só existe porque não existe uma natureza humana única.

  

II – O CÉREBRO COMO MÁQUINA DE VARIAÇÃO: PERCEPÇÃO, PREDIÇÃO E CONSTRUÇÃO

Nos últimos vinte anos, uma transformação conceptual silenciosa alterou de modo irreversível a forma como compreendemos o cérebro humano. A visão clássica – segundo a qual o cérebro seria um órgão passivo, dedicado a receber sinais, processá-los e gerar respostas – foi substituída por um modelo radicalmente distinto. Hoje, a literatura científica convergiu para a ideia de que o cérebro é, acima de tudo, um sistema preditivo, cuja função principal não é reagir ao mundo, mas antecipá-lo. Esta mudança, decisiva para todo o argumento que aqui desenvolvemos, tem implicações profundas: se o cérebro constrói continuamente o mundo que percebemos, então não existe uma única forma “correta” de ver, sentir ou interpretar; existem múltiplas, dependentes das experiências e aprendizagens de cada organismo.

Lisa Feldman Barrett tem sido uma das autoras mais influentes nesta reconfiguração. Do ponto de vista neurocientífico, a percepção não é um reflexo transparente dos estímulos externos. É o resultado de uma inferência automática, onde o cérebro combina sinais sensoriais ruidosos com previsões extraídas de experiências passadas. O que vemos, ouvimos ou sentimos corresponde à hipótese que o cérebro considera mais plausível num determinado instante. Dito de outra forma, percepcionamos o mundo provável, não o mundo tal como é. Esta característica – essencial ao funcionamento adaptativo – introduz um elemento inevitável de variação: cérebros com histórias diferentes constroem interpretações diferentes.

A investigação de Daniel Yon oferece uma demonstração particularmente clara desta dinâmica. A percepção auditiva, por exemplo, apresenta muitos dos mesmos fenómenos que observamos na visão. Sons ambíguos como o célebre “Yanny/Laurel” ou as gravações que parecem alternar entre “green needle” e “brainstorm” mostram que o cérebro não “ouve” o som bruto. Seleciona uma interpretação com base em expectativas, contexto, memória e linguagem. Experiências elegantemente desenhadas revelam ainda que o córtex frontal antecipa os sons prováveis antes de estes chegarem às regiões auditivas, modulando-as. Assim, aquilo que ouvimos depende da forma como o cérebro ajusta a relação entre previsão e evidência. Dois indivíduos expostos ao mesmo estímulo acústico podem, sem qualquer patologia, chegar a percepções divergentes.

Esta variabilidade não é um defeito cognitivo. É a solução que a evolução encontrou para permitir que o organismo se adapte a ambientes imprevisíveis. Em contextos de elevada incerteza, sistemas puramente reactivos seriam demasiado lentos e ineficazes. O cérebro humano, ao contrário, aumenta a utilidade do sinal sensorial introduzindo-lhe uma componente interpretativa, estocástica e culturalmente filtrada. Isso significa que diferentes ambientes de desenvolvimento – desde padrões linguísticos a normas sociais, desde práticas educativas a microclimas emocionais – esculpem diferentes repertórios de previsão. E estes repertórios guiam a percepção, o comportamento e até as decisões morais.

Luiz Pessoa vai ainda mais longe ao defender que não existe uma separação nítida entre processos “cognitivos” e “emocionais”. O cérebro funciona em redes amplas e interligadas onde motivação, atenção, aprendizagem, emoção e acção se entrelaçam continuamente. Assim, não podemos falar de um módulo isolado para percepção, decisão ou afeto. Cada uma destas funções emerge de interações distribuídas entre múltiplas regiões. Se a arquitetura funcional é composta por redes complexas e dinamicamente configuráveis, não há razão para supor que todos os cérebros as organizam da mesma forma. A própria variabilidade interindividual na conectividade neuronal (incluindo conectividade funcional em repouso) já permite antecipar diferenças em estilos cognitivos, ritmos emocionais e padrões de reactividade.

Soma-se a isto o facto de que os cérebros não apenas percepcionam de modos diferentes. Aprendem diferente, recordam diferente, sentem diferente. E esta diversidade decorre não apenas de factores culturais ou sociais, mas de uma característica mais fundamental: o cérebro é uma máquina altamente plástica, permanentemente moldada pela experiência. A sua função não é impor uniformidade, mas acomodar e amplificar variações. Os mecanismos que utilizamos para segmentar palavras, interpretar expressões, inferir intenções ou prever comportamentos são calibrados pelas circunstâncias particulares de cada vida.

A investigação com bebés ilustra esta plasticidade desde o início da vida. Mesmo antes de compreenderem a linguagem, os bebés identificam padrões estatísticos na fala. Aprendem a segmentar palavras rastreando probabilidades de transição entre sons. Mas estas probabilidades não são universais. Variam entre línguas e dialetos, e os cérebros infantis adaptam-se rapidamente ao padrão específico da comunidade linguística em que nascem. Duas crianças expostas a dietas linguísticas diferentes constroem mapas fonológicos distintos, que depois condicionam a forma como percebem sons durante toda a vida. O mundo sensorial é, desde o berço, um espaço de aprendizagem culturalmente guiada.

Estas dinâmicas tornam claro que a diversidade humana começa muito antes de qualquer construção social explícita. É uma consequência directa do modo como o cérebro opera. Sendo a percepção uma inferência, a emoção uma construção, a memória uma reconstrução e a acção uma aposta probabilística no futuro, não há como esperar que dois cérebros distintos produzam representações idênticas. E não há como pretender que esta heterogeneidade seja eliminável. Pelo contrário, ela é constitutiva da espécie.

Esta constatação abala a hipótese de uniformidade que, noutros domínios, ainda se assume como natural. Se diferentes cérebros constroem diferentes percepções mesmo em condições controladas de laboratório, torna-se evidente que a variação será ainda maior em contextos complexos da vida real. Cada ser humano ocupa uma posição distinta numa ecologia de previsões, aprendizagens, memórias e expectativas. E, por isso, a diversidade não é uma excepção estatística. É a linha de base.

A ciência do cérebro acrescenta uma camada decisiva a esta crítica à natureza humana única. O cérebro não é um espelho que recebe passivamente estímulos do mundo, é um órgão preditivo, ocupado em antecipar constantemente o que está prestes a acontecer. Percepção, memória e emoção não são registos transparentes da realidade, são hipóteses que o cérebro formula e actualiza à luz da experiência. Vemos, recordamos e sentimos o mundo através de modelos internos que são sempre provisórios e que variam de pessoa para pessoa.

Quando Yon mostra que o cérebro é, na prática, uma máquina de previsão, está a desmontar a ideia de que exista uma gramática universal da experiência humana. Se cada indivíduo constrói as suas próprias expectativas a partir da sua história de interacções, então a forma como cada um percebe perigo, reconhecimento, rejeição, ameaça ou alívio não pode ser reduzida a um padrão único. O que é óbvio para um organismo treinado num certo ambiente pode ser opaco para outro. O que é sentido como humilhação por alguém pode ser interpretado como indiferença por outro, e assim sucessivamente.

Lisa Feldman Barrett leva esta visão até às emoções. Em vez de emoções pré-definidas, com circuitos fixos e expressões universais, Barrett descreve um sistema nervoso que constrói instâncias emocionais a partir de ingredientes básicos, como sensações corporais, memórias, conceitos aprendidos e contexto social. A tristeza que um indivíduo sente não é a mesma tristeza que outro experimenta, ainda que usem a mesma palavra. A expressão facial que num rosto sinaliza medo, noutro pode ser concentração ou fadiga. Para Barrett, quem tenta ler emoções directamente do rosto está a fazer um exercício de adivinhação, que pode ter mais ou menos sucesso, mas continua a ser adivinhação.

Luiz Pessoa reforça esta desconstrução, ao descrever o cérebro como uma rede entrançada em que razão, emoção, motivação e percepção estão profundamente entrelaçadas. Não existem módulos puros de raiva, de culpa ou de intenção que possam ser observados, medidos e traduzidos directamente em categorias psicológicas. O que existe é um fluxo contínuo de actividade em rede, que combina estados corporais, expectativas, contexto social e história passada. Esta arquitetura entrançada do cérebro torna ainda mais problemática qualquer tentativa de falar de um funcionamento emocional ou racional típico.

A convergência destes autores aponta sempre na mesma direcção, o ser humano não possui uma forma padrão de ver, sentir e interpretar o mundo. O que temos são múltiplas naturezas humanas, configuradas por trajectórias biológicas e sociais irrepetíveis. O cérebro preditivo não produz réplicas de um modelo ideal, produz variações contínuas sobre o tema humano.

 

III – EMOÇÃO COMO CONSTRUÇÃO E VARIAÇÃO: ENTRE A AMBIGUIDADE DE RUSSELL E A CONSTRUTIVIDADE DE BARRETT

Se a percepção é construída e se a variação interindividual é um traço estrutural do cérebro humano, seria improvável que as emoções escapassem a esta mesma lógica. Contudo, durante grande parte do século XX, prevaleceu uma visão distinta: a ideia de que emoções como tristeza, raiva, medo, surpresa ou nojo teriam expressões universais, inatas e reconhecíveis em qualquer cultura ou indivíduo. Este paradigma, associado sobretudo a Paul Ekman, moldou décadas de investigação e tornou-se particularmente influente em áreas aplicadas, incluindo práticas forenses e jurídicas. A promessa era sedutora: se as emoções se manifestam de forma universal, então é possível inferir estados internos a partir de sinais externos. Contudo, um exame cuidadoso da evidência disponível revela que esta promessa nunca foi devidamente cumprida.

Carroll Izard, James Russell e muitos outros têm mostrado que as bases empíricas da tese da universalidade são frágeis. Russell, em particular, expôs com rigor metodológico como a maior parte dos estudos que supostamente confirmavam o carácter universal das expressões emocionais assentavam em procedimentos artificiais, culturalmente enviesados e profundamente afastados das condições naturais da vida real. O problema que Russell identifica não é meramente técnico. É estrutural. Quando os estudos utilizam métodos de “escolha forçada”, em que os participantes têm de seleccionar uma emoção a partir de uma lista pré-definida, o desenho experimental induz o resultado pretendido. Quando se apresentam rostos estilizados ou fotografias altamente prototípicas, removendo ambiguidade e contexto, o próprio estímulo já não é representativo da expressão humana quotidiana. E quando os participantes recebem uma narrativa ou rótulo emocional antes de ver o rosto, a interpretação torna-se uma tarefa de correspondência guiada, não um reconhecimento espontâneo.

O ponto decisivo da crítica de Russell é que, quanto mais ecológica a metodologia, menor é a convergência nos resultados. Quando se observam expressões naturais, quando não há pistas linguísticas ou narrativas prévias, quando se recolhem descrições livres em vez de escolhas forçadas, a alegada universalidade desvanece-se. A variabilidade não é marginal. É central. E quando se estudam culturas não expostas à categorização emocional ocidental, o padrão torna-se ainda mais evidente: não há consenso global sobre o significado das expressões faciais.

Mas se Russell desmonta a universalidade, é Lisa Feldman Barrett quem fornece a teoria alternativa mais robusta para explicar o fenómeno: a emoção não é um módulo biológico pré-programado. É uma construção, produto da interacção entre estados corporais, aprendizagem cultural, linguagem, memória e contexto. Segundo Barrett, o cérebro não deteta emoções. Prediz emoções, inferindo-as a partir de padrões sensoriais que só ganham significado através de categorias previamente aprendidas. Tal como na percepção visual ou auditiva, a emoção é uma hipótese que o cérebro formula, e não um objecto que descobre.

Esta posição tem uma consequência particularmente relevante para o tema da interpretação de expressões faciais. Para Barrett, não existe qualquer expressão emocional que, por si só, tenha um significado universal. A mesma expressão – um franzir de sobrancelhas, um sorriso, um olhar fixo – pode significar emoções completamente diferentes em pessoas distintas, em momentos distintos e em contextos distintos. Um sorriso pode sinalizar simpatia, mas também hostilidade, submissão, nervosismo, embaraço ou mesmo dor. O que nós designamos como “leitura” de expressões não passa, na prática, de um acto de adivinhação narrativa, guiado por expectativas culturais e por pressupostos implícitos. Podemos acertar por coincidência, mas não porque exista uma correspondência estável entre expressão e emoção.

A convergência entre Russell e Barrett é clara: ambos rejeitam a ideia de que o rosto humano seja um código emocional universal. A divergência é igualmente fecunda: Russell concentra-se na fragilidade metodológica da tese universalista, Barrett oferece o modelo teórico que explica essa fragilidade. Enquanto Russell demonstra que as expressões são ambíguas e culturalmente interpretadas, Barrett demonstra porque é inevitável que assim seja, dado o funcionamento inferencial do cérebro.

Uma das manifestações mais persistentes do mito da natureza humana única é a crença em expressões emocionais universais. A ideia de que existe um catálogo fechado de expressões faciais que corresponderiam, de modo quase mecânico, a emoções internas específicas. Num imaginário ainda dominante, um certo tipo de cara seria sempre tristeza, outro seria sempre raiva, outro seria sempre medo, independentemente da pessoa, da cultura ou do contexto.

A literatura empírica já desmantelou de forma convincente esta visão simplista. James Russell mostrou que a pretensa universalidade das emoções básicas não resiste a análises sistemáticas. A variabilidade cultural e individual é demasiado grande para ser encaixada em meia dúzia de rótulos invariáveis. Lisa Feldman Barrett leva esta crítica mais longe ao mostrar que, mesmo dentro da mesma cultura, a mesma expressão num rosto pode corresponder a estados internos radicalmente diferentes. O que num indivíduo é vergonha, noutro pode ser dor física, noutro ainda pode ser uma tentativa aprendida de mostrar neutralidade.

Se aceitarmos esta perspectiva, torna-se claro que não existe um código secreto inscrito no rosto que permita aceder ao interior das pessoas. A expressão emocional não é um reflexo directo de um estado oculto, é uma acção situada, moldada por convenções sociais, expectativas culturais, aprendizagens precoces e estratégias de autorregulação. Em muitas situações, o que vemos no rosto é aquilo que a pessoa aprendeu que é seguro, adequado ou eficaz mostrar naquele contexto específico, e não um espelho transparente do que sente.

Quando alguém tenta ler tristeza, arrependimento, frieza, empatia ou mentira a partir de uma expressão, está a projectar modelos próprios sobre um fenómeno ambíguo. Em certas circunstâncias, essa leitura pode aproximar se do que está a acontecer, em muitas outras pode afastar se por completo. Se duas pessoas, com histórias emocionais diferentes, olham para o mesmo rosto, é provável que vejam coisas distintas. Uma verá culpa, outra verá medo, outra verá controlo, outra verá apenas alguém cansado.

Na prática, isto significa que não há base científica para utilizar expressões emocionais como se fossem indicadores universais e fiáveis da vida interna. As emoções são construídas, e as expressões, também. A variabilidade é a regra, e não a excepção. Falar de natureza humana no singular, neste domínio, é confundir os atalhos da psicologia intuitiva com o estado real da ciência.

Aqui, a teoria do cérebro em rede de Luiz Pessoa reforça esta conclusão. Se emoção e cognição emergem de redes plurais e dinâmicas, não há lugar para sistemas emocionais fixos, encapsulados e imutáveis. A variabilidade é o resultado esperado de um sistema complexo cuja função não é reproduzir padrões invariantes, mas adaptar-se continuamente a circunstâncias variáveis. A emoção não é um reflexo, é uma construção probabilística.

Este quadro é ainda mais solidificado quando consideramos a investigação contemporânea sobre erro, ambiguidade e falha de inferência. Os trabalhos de Christoph Teufel sobre percepção preenchida mostram que cérebros com tendências para confiar em excesso nas suas próprias expectativas não apenas veem o mundo de forma distinta, como preenchem o que não está lá. Os estudos de Phil Corlett demonstram que os mesmos mecanismos preditivos que sustentam a percepção quotidiana podem, quando desregulados, dar origem a fenómenos tão extremos quanto alucinações. E Daniel Yon mostrou que até em cérebros saudáveis as hipóteses internas chegam antes do estímulo, moldando-o.

Estas investigações revelam um ponto fundamental: os cérebros não respondem ao mundo de forma neutra, respondem de forma calibrada por experiências passadas, categorias internalizadas e narrativas culturalmente adquiridas. É por isso que tentar inferir a emoção de alguém a partir de uma expressão facial é epistemicamente arriscado. Para Barrett, não há uma leitura privilegiada do rosto humano, apenas inferências que podem ou não coincidir com a experiência interna de quem as expressa. E é por isso que, mesmo dentro da mesma cultura, dois indivíduos podem interpretar a mesma expressão de formas radicalmente diferentes. Para Russell, esta variabilidade não é um obstáculo técnico. É a realidade empírica do fenómeno.

As implicações filosóficas desta visão são profundas. A emoção deixa de ser um fenómeno que o observador pode “detetar”, passando a ser um fenómeno que apenas pode ser inferido com base em múltiplas camadas de informação contextual. Aqui, a emoção aproxima-se do significado linguístico, do qual não existe decifração independente do contexto. O rosto humano não é um texto universal. É uma superfície interpretativa cujo sentido depende do léxico emocional aprendido.

Assim se completa a transição conceptual iniciada na secção anterior. Se o cérebro prevê antes de sentir, se constrói antes de detetar, então a emoção não é uma essência que habita o corpo. É um acontecimento emergente, plural, moldado por histórias individuais e por ecologias culturais específicas. Não existe “a” forma humana de sentir. Existem muitas, e estas variam não apenas entre culturas, mas entre indivíduos. A multiplicidade não é ruído. É estrutura.

 

IV – DESENVOLVIMENTO, ADAPTAÇÃO E CULTURA: AS ECOLOGIAS DA VARIAÇÃO HUMANA

Grande parte das nossas instituições, discursos públicos e decisões quotidianas ancora-se numa confiança implícita na experiência pessoal. Acreditamos que, por termos vivido o suficiente, sabemos como as pessoas são, como reagem, o que é normal ou anormal, previsível ou surpreendente. Esta crença é reforçada por narrativas culturais que valorizam o senso comum como critério de verdade. A experiência passa a ser tratada como se fosse um instrumento epistémico robusto, quando na realidade é um conjunto de memórias parciais, enviesadas e profundamente localizadas.

A antropologia e a psicologia cultural mostram, há décadas, que aquilo a que chamamos experiências típicas não são universais, são experiências de um certo grupo, em certas condições sócio económicas, históricas e culturais. Joseph Henrich sintetizou esta evidência ao mostrar que muitos dos fenómenos que tomamos por universais são, na realidade, características de sociedades ocidentais, educadas, industrializadas, ricas e democráticas. O comportamento humano WEIRD (Western, Educated, Industrialized, Rich, Democratic) é estatisticamente anómalo à escala da espécie, mas continua a ser tratado como padrão.

Isto tem consequências profundas para qualquer tentativa de falar de natureza humana. Quando alguém diz que qualquer pessoa no seu perfeito juízo teria reagido de uma certa maneira, está quase sempre a falar de pessoas parecidas consigo, em contextos parecidos com o seu. A experiência que serve de régua é, em grande medida, biográfica e culturalmente situada. Não é “a” experiência humana, é a experiência de um segmento estreito da humanidade.

A psicologia cognitiva acrescenta uma nova camada de fragilidade a esta confiança. Sabemos hoje que a memória é reconstrução, e não reprodução literal de acontecimentos. Sabemos que a percepção é inferência, mais do que cópia. Sabemos que a mente humana sofre de enviesamentos de confirmação, heurísticas de disponibilidade e ilusões de causalidade que distorcem a forma como interpretamos o mundo. A experiência não é um registo neutro do que aconteceu, é uma narrativa que vai sendo ajustada para preservar coerência interna.

Quando juntamos estas peças, o quadro torna-se nítido, a experiência pessoal é um recurso valioso para orientar a sobrevivência quotidiana, mas é um péssimo fundamento para formular leis gerais sobre o ser humano. A noção de que existe uma natureza humana única assenta precisamente neste equívoco, extrapola-se, a partir de um conjunto de vivências localizadas, um modelo universal de funcionamento. O que a ciência contemporânea faz é retirar essa pretensão de universalidade, sem desvalorizar a experiência, mas recolocando-a no seu devido lugar, como um ponto de vista entre muitos, e não como medida da diversidade humana.

Se a percepção e a emoção são processos construídos, inferenciais e culturalmente calibrados, então a diversidade humana não é uma consequência acidental das diferenças individuais. É uma consequência necessária da própria arquitetura biológica e social da espécie. A variabilidade começa cedo, molda-se ao longo de toda a vida e multiplica-se à medida que os indivíduos se inserem em ecologias culturais distintas. A partir daqui a pergunta relevante já não é “porque é que os humanos diferem tanto uns dos outros”, mas antes “como seria possível que fossem iguais”.

A neurociência contemporânea confirma esta intuição. Luiz Pessoa mostra de forma sistemática que o cérebro humano não é um conjunto de módulos especializados que respondem de forma idêntica em todos os indivíduos. O cérebro é uma rede dinâmica que se autoreorganiza ao longo do tempo, ajustando-se às pressões ambientais, às necessidades do organismo e às interacções sociais. A variabilidade não é uma anomalia estatística. É o produto lógico de sistemas altamente plásticos, sensíveis às condições externas e internas. Se cada cérebro é o resultado de uma história singular de experiências, categorias, aprendizagens e contextos, nenhuma teoria coerente poderia esperar que o funcionamento psicológico fosse uniforme.

Esta plasticidade é particularmente evidente no desenvolvimento. Desde a infância, a exposição a linguagens distintas, a padrões afetivos diferentes, a ecologias sociais mais ou menos previsíveis ou mais ou menos violentas, produz cérebros calibrados para mundos distintos. A neurociência do desenvolvimento é inequívoca: não nascemos com um repertório emocional, cognitivo ou perceptivo totalmente formado. Nasce-se com uma arquitetura de possibilidades, que se actualiza à medida que o organismo procura interpretar e sobreviver ao ambiente. A proximidade física dos cuidadores, a regularidade das interacções, a previsibilidade das rotinas, a diversidade sensorial, a exposição à linguagem, as normas culturais sobre comportamento e emoção – tudo isto influencia a forma como o cérebro aprende a interpretar o mundo.

Quando se passa do nível individual para o nível populacional, as implicações tornam-se ainda mais evidentes. Joseph Henrich mostrou que muitas das suposições consideradas universais na psicologia ocidental derivam na realidade de amostras culturalmente anómalas: populações WEIRD. Estas populações representam apenas uma fração mínima da diversidade humana e, no entanto, tornaram-se o padrão implícito daquilo que se pensava ser “universal”. Estudos de percepção visual, moralidade, raciocínio, cooperação, individualismo, interpretação emocional e tomada de decisão revelam uma heterogeneidade profunda entre culturas. O que parecia ser uma propriedade da espécie era, afinal, um artefacto cultural. A “psicologia humana” era, na prática, a psicologia de ocidentais escolarizados.

Henrich revela algo ainda mais fundamental. As culturas não produzem apenas diferenças de hábitos ou crenças. Produzem diferenças cognitivas. Populações que valorizam a interdependência têm mecanismos atencionais distintos das que valorizam o individualismo; sociedades onde a honra masculino-familiar medeia conflitos desenvolvem sensibilidades emocionais distintas das sociedades que priorizam a manutenção da ordem institucional; culturas que promovem raciocínio analítico obtêm padrões de categorização diferentes das culturas que promovem raciocínio holístico. Nada disto é superficial. São modos alternativos de ver o mundo – literalmente – que moldam a forma como os cérebros codificam e decodificam a experiência.

É nesta confluência entre plasticidade neuronal e diversidade cultural que se compreende o argumento decisivo: não existe um modo único de ser humano. Existem muitos modos possíveis, moldados por ecologias distintas. Tal como diferentes ambientes selecionam diferentes estratégias adaptativas em espécies animais, diferentes ecologias culturais moldam diferentes expressões da cognição humana.

A estas variações soma-se outro factor determinante: o efeito cumulativo da biologia social, tal como descrito por Robert Sapolsky. Para Sapolsky, o comportamento humano não pode ser compreendido apenas a partir de mecanismos cognitivos ou emocionais isolados. É o resultado de processos que se desenrolam em escalas temporais distintas – segundos, horas, anos, décadas e milénios. Num mesmo indivíduo coexistem influências genéticas, hormonais, desenvolvimentais, sociais, culturais e evolutivas, todas elas interligadas. A tentativa de reduzir a variabilidade humana a um conjunto limitado de traços universais ignora esta complexidade estrutural.

Uma das contribuições mais relevantes de Sapolsky é demonstrar que a sensibilidade ao stress, a impulsividade, a agressividade, a empatia e o autocontrolo são profundamente moldados por experiências precoces e por factores socioeconómicos. Crianças expostas a ambientes instáveis, imprevisíveis ou violentos desenvolvem sistemas neuroendócrinos ajustados a ecologias de ameaça; crianças expostas a ambientes seguros, ricos em previsibilidade e afeto desenvolvem sistemas ajustados à cooperação e à regulação emocional. As diferenças não são patológicas. São adaptativas num dado contexto. A variabilidade é, novamente, a norma.

Sapolsky mostra ainda que as culturas produzem ambientes biológicos distintos. Sociedades mais hierárquicas induzem padrões diferentes de activação do eixo do stress; sociedades mais igualitárias modulam de forma distinta a agressividade e a confiança. O comportamento humano é sempre a intersecção entre biologia e ecologia social. Não existe um padrão universal de motivação, de moralidade ou de reacção emocional. Existem respostas calibradas à ecologia vivida.

É também por esta razão que a tentativa de extrapolar leis universais do comportamento humano a partir de contextos reduzidos – por exemplo, estudantes universitários ocidentais – produz inevitavelmente conclusões enviesadas. A variabilidade humana não é um obstáculo ao progresso científico. É o objecto de estudo. E a ciência contemporânea tem vindo a reconhecer que todas as tentativas de reduzir essa variabilidade a um modelo único incorrem em imprecisão conceptual e erro empírico.

O retrato que emerge é claro: cérebros diferentes, desenvolvidos em culturas diferentes, expostos a ecologias sociais diferentes, interpretam o mundo de maneiras diferentes. Estas diferenças não são desvios. São expressões legítimas da plasticidade humana. E constituem uma refutação directa da tese de que existe uma natureza humana única e estável que se manifesta de forma idêntica em todos os contextos. A unidade da espécie não reside na uniformidade, mas na capacidade de gerar múltiplas configurações de resposta.

A partir deste ponto, torna-se natural perguntar o que une então esta diversidade. Se não existe uma natureza humana singular, o que existe? A resposta encontra-se no modo como o cérebro funciona: através de sistemas preditivos que constroem categorias, inferem significados, calibram expectativas e ajustam comportamentos com base na história individual e colectiva. A universalidade não está no conteúdo das emoções, percepções ou crenças, mas no mecanismo que permite que diferentes conteúdos emergem. A diversidade humana é, paradoxalmente, o produto de um mecanismo universal: a inferência preditiva aplicada a ecologias diferenciadas.

 

V – DESINCRUSTAR O MITO DA ESSÊNCIA HUMANA: LÓGICA, BIOLOGIA E PLURALIDADE

 

V.1. Mudança de paradigma, entre intuição evolutiva e ciência da mente

Os grandes filósofos da ciência lembram-nos que as teorias não caem apenas porque foram refutadas de forma impecável num quadro abstrato, caem porque se tornam insustentáveis face à acumulação de anomalias. Popper recorda que o progresso científico passa pela refutação de teorias que já não resistem ao confronto com os dados. Kuhn acrescenta que os paradigmas não se rendem elegantemente à força da razão, resistem, defendem-se, reorganizam-se, até que a dissonância entre o que prometem explicar e o que efectivamente conseguem descrever se torna demasiado grande para ser ignorada.

A ficção de uma natureza humana única encontra-se hoje neste ponto de saturação. Já não é apenas uma hipótese teoricamente frágil, é uma hipótese empiricamente indefensável. Biologia evolutiva, neurociência, psicologia, antropologia e ciências cognitivas convergem na ideia de que a variabilidade é estrutural, que as mentes humanas são múltiplas nas suas configurações, que os contextos moldam profundamente o que é vivido e que não existe um molde psicológico único em que possamos encaixar todos os indivíduos.

Schopenhauer lembraria que não basta ter razão, é preciso usar a retórica certa no momento certo. Strevens diria que a ciência real sempre avançou numa mistura de rigor e psicologia social. Neste contexto, a intuição evolutiva sobre a importância da variabilidade tem uma função estratégica relevante. É simples, facilmente comunicável e funciona como porta de entrada para aceitar que talvez não seja legítimo continuar a falar de natureza humana no singular. A intuição de Darwin abre espaço para que as teorias mais sofisticadas da neurociência construtivista sejam levadas a sério por quem não vive esse debate técnico por dentro.

Esta combinação entre intuição evolutiva e ciência da mente oferece uma narrativa poderosa, não existe uma natureza humana única, existem naturezas humanas, múltiplas, evolutivamente moldadas e culturalmente configuradas. O paradigma antigo, que supunha um sujeito universal com respostas previsíveis, deixa de ter onde se apoiar. Um novo paradigma, mais modesto e mais exigente, começa a desenhar-se, aquele que parte da pluralidade como dado de base e que vê com desconfiança qualquer formulação demasiado confiante sobre o que “o ser humano” é ou faz em geral.

A ideia de que existe uma “essência humana” fixa, reconhecível e universal continua a exercer um fascínio conceptual persistente. É uma promessa de simplicidade num domínio onde tudo parece complexo, instável, contingente. É também uma herança de tradições filosóficas e religiosas que procuraram, durante séculos, definir o humano através de características invariantes – racionalidade, moralidade, linguagem, consciência, simbolismo. Contudo, à luz da ciência contemporânea, esta visão apresenta-se como insustentável. Não porque falte uma unidade biológica à espécie, mas porque os mecanismos que geram a experiência humana são intrinsecamente variáveis, contextuais, plurais. O que a ciência revela não é um centro fixo, mas um conjunto de processos que produzem diferença.

 

V.2. O equívoco da uniformidade: quando a procura de ordem cria ficções

A tese de uma natureza humana única tende a apoiar-se num raciocínio circular. Parte-se da inferência intuitiva de que os humanos “parecem” semelhantes entre si – têm corpos semelhantes, cérebros semelhantes, necessidades semelhantes – e extrapola-se que a mente também deve funcionar de forma semelhante em todos. O problema é que semelhante não é igual; e semelhante em termos anatómicos não implica semelhante em termos funcionais.

A psicologia clássica caiu repetidamente nesta armadilha. Procurou identificar emoções básicas universais, expressões faciais universais, mecanismos morais universais, fases cognitivas universais, categorias perceptivas universais. A atracção pela universalidade é compreensível, mas metodologicamente enganadora. Como Lisa Feldman Barrett demonstra, a suposição de que emoções têm assinaturas biológicas e faciais invariantes foi sustentada mais pela força retórica de tradições académicas do que por evidência empírica sólida. Quando se examinam as variações entre indivíduos, grupos e culturas, as emoções revelam-se construções emergentes, calibradas pela aprendizagem e pelo contexto.

Esta crítica não se limita à emoção. James Russell mostrou, anos antes, que os observadores não interpretam expressões faciais como janelas transparentes para estados emocionais internos, mas sim como estímulos ambíguos que exigem inferência contextual. A mesma expressão pode significar emoções diferentes para indivíduos diferentes, mesmo dentro da mesma cultura. Barrett vai mais longe: ler emoções através de expressões não é um exercício de deteção, mas de adivinhação. A precisão depende do conhecimento prévio, das expectativas culturais e da relação social entre observador e observado. A ideia de que existe um léxico universal de expressões é uma projeção simplificadora, não um facto científico.

O mesmo se verifica noutras áreas. O moralismo universalista falha perante a diversidade antropológica; o racionalismo universalista fracassa perante estudos interculturais de tomada de decisão; o cognitivismo universalista implode quando confrontado com a plasticidade neuronal que Pessoa, Sapolsky e Henrich descrevem. A universalidade que se procurava nas respostas encontra-se apenas nos mecanismos que produzem variabilidade – não nas respostas propriamente ditas.

 

V.3. A metáfora errada: o humano não é um relógio, é uma ecologia

O paradigma clássico dos séculos XVII a XX – profundamente influenciado por Descartes, Newton e Laplace – tratava o comportamento humano como algo que poderia ser desconstruído em componentes estáveis e recombinado numa explicação linear. O humano era um relógio complexo, mas, no essencial, mecânico. A ciência contemporânea substitui esta metáfora por outra: a de uma ecologia dinâmica, onde variáveis múltiplas interagem em escalas temporais diferentes, produzindo fenómenos emergentes.

Robert Sapolsky desmonta esta metáfora mecânica de forma exemplar. Para explicar um único comportamento humano, seria necessário analisar:

·       eventos que ocorrem segundos antes (activação neuronal, percepção de ameaça, regulação autonómica);

·       horas antes (padrões hormonais, ciclos metabólicos);

·       dias antes (níveis de stress, interações sociais recentes);

·       anos antes (aprendizagens, traumas, estatuto socioeconómico, oportunidades culturais);

·       décadas antes (desenvolvimento cerebral, vínculos de infância, ecologia familiar);

·       séculos antes (estruturas sociais, normas culturais, sistemas de crenças);

·       milénios antes (pressões evolutivas, formas de organização colectiva).

O que esta perspectiva revela é que o que chamamos “natureza humana” não pode ser compreendido como um conjunto estático de características, mas como uma resultante histórica, biológica e cultural continuamente negociada. Nenhum comportamento humano é puramente biológico, puramente cultural ou puramente individual. É sempre híbrido, composto, dinâmico.

O mesmo vale para a percepção e a emoção. O cérebro não reage ao mundo como uma câmara ou um sensor passivo. Constrói o mundo a partir de previsões, inferências, hipóteses, expectativas. Daniel Yon mostra que estas inferências podem ser tão potentes que produzem alucinações, completam padrões inexistentes, inventam contornos em imagens degradadas ou moldam o que parece ser uma percepção directa. A percepção é uma negociação permanente entre o que é recebido e o que é antecipado. E negociações não produzem invariantes; produzem soluções diversas.

 

V.4. Quando a cultura molda a mente: diferenças que são estruturais, não superficiais

Joseph Henrich demonstra empiricamente que aquilo que muitas vezes se apresenta como universal são traços culturais específicos – fenómenos provincianos travestidos de leis gerais. Populações WEIRD desenvolveram modelos de raciocínio, moralidade, personalidade e cooperação que não representam a maior parte da humanidade. Em sociedades holísticas, as pessoas percepcionam relações e contextos que indivíduos de culturas analíticas tendem a ignorar; em sociedades com estruturas familiares extensas, a moralidade tende a ser relacional e não abstrata; em comunidades onde a sobrevivência depende de interdependência forte, a individualidade assume contornos muito diferentes.

O cérebro molda-se a estas ecologias. Aprender uma língua tonal altera a forma como o cérebro processa frequência e entoação; crescer numa cultura de honra modifica a sensibilidade à provocação; viver em sociedades com normas colectivistas altera redes associadas a autoconceito e tomada de decisão. Isto não são diferenças superficiais: são diferenças estruturais.

O que emerge é um quadro claro: não existe uma mente humana universal, mas uma arquitetura universal para produzir mentes diversas.

 

V.5. A rigidez ideológica como excepção, não como regra

Se a variedade é a norma, a rigidez cognitiva surge como um fenómeno que merece explicação. É aqui que o trabalho de Leor Zmigrod adquire relevância. Para Zmigrod, o que caracteriza o pensamento ideológico extremo – seja à esquerda, à direita ou em qualquer outro domínio – é a sua incapacidade de actualizar crenças à luz de nova evidência e a sua propensão para fundir identidade pessoal e identidade grupal. O ideólogo extremo não pensa com o mundo; pensa contra ele. A rigidez não é um traço essencial; é um bloqueio, uma redução da capacidade adaptativa típica do cérebro humano.

Na sua investigação, Zmigrod demonstra que indivíduos ideologicamente extremos têm menor flexibilidade cognitiva, menor tolerância à ambiguidade e maior propensão para dicotomias simplistas. Paradoxalmente, estes indivíduos veem-se a si próprios como guardiões de uma essência humana – moral, nacional, espiritual, política. Mas é precisamente essa crença numa essência que os torna incapazes de lidar com a pluralidade real do humano.

Num certo sentido, a ideologia extrema é a tentativa desesperada de reintroduzir uma “natureza humana única” num mundo que a ciência já dissolveu. É a nostalgia de uma simplicidade que nunca existiu.

 

V.6. O argumento final: a evidência não aponta para uma única natureza humana, mas para múltiplas

O fio unificador destas contribuições é claro:

Não existe uma natureza humana universal no sentido forte.

O que existe é uma espécie dotada de mecanismos universais para gerar diversidade.

Esta formulação é mais compatível com a evidência do que qualquer postulado de invariância psicológica. Garante consistência conceptual sem obstruir a riqueza empírica. E coloca a ciência contemporânea em continuidade com uma tradição filosófica que sempre desconfiou de essências fixas – de Heraclito a Nietzsche.

As ciências do cérebro, do comportamento e da cultura convergem num ponto essencial: a pluralidade humana não é um ruído a eliminar, mas a assinatura da própria espécie. Onde os modelos antigos procuravam uniformidade, os novos modelos encontram ecologias; onde antes se procurava essência, agora encontra-se história; onde antes se imaginava estabilidade, descobre-se plasticidade.

Dito de outra forma: a diversidade humana não é o desvio. É o dado.

 

VI – CONCLUSÃO: A PLURALIDADE COMO FUNDAMENTO, NÃO COMO EXCEPÇÃO

A história da ciência do comportamento humano pode ser lida como uma longa tentativa de simplificação. Procurou-se uma gramática universal das emoções, uma lógica universal da moralidade, uma estrutura universal de raciocínio, um conjunto universal de disposições psicológicas que permitisse descrever o humano em termos de invariantes. Estas tentativas eram compreensíveis. Ofereciam uma promessa de ordem num domínio povoado por variáveis biológicas, sociais, culturais e históricas em interacção permanente. Mas a ciência contemporânea, com um rigor que não se compadece com intuições antigas, veio mostrar que essa promessa era ilusória.

O que atravessa as contribuições de Barrett, Sapolsky, Pessoa, Russell, Henrich, Yon e Zmigrod é uma conclusão convergente:

não existe uma natureza humana entendida como um conjunto único e universal de características psicológicas.

O que existe é uma arquitetura biológica altamente plástica, historicamente moldável, culturalmente configurável e cognitivamente maleável, que produz diversidade como função normal, e não como anomalia.

Este ponto merece ser sublinhado. A pluralidade não é uma falha da teoria; é o núcleo da realidade. Não é um obstáculo a ser esquecido para que as explicações ganhem elegância; é o material de que as explicações devem ser feitas. A biologia humana não determina conteúdos, determina capacidades. Os cérebros não impõem significados, constroem-nos. As culturas não gravitam em torno de essências, mas de ecologias de práticas, instituições, aprendizagens e incentivos. E os indivíduos não se comportam segundo um guião universal, mas segundo interacções específicas entre predisposições, contextos e histórias pessoais.

Esta pluralidade, longe de nos conduzir ao relativismo absoluto, oferece-nos um referencial mais sólido, mais empírico e mais honesto. Permite-nos distinguir onde reside a universalidade legítima. O que é universal não são as emoções específicas, mas a capacidade de construí-las. Não são as crenças particulares, mas a maquinaria que as torna possíveis. Não são os valores concretos, mas a plasticidade que os molda. Não são as estruturas morais, mas a propensão para normatividade. Não são as respostas, mas o sistema que gera diferentes respostas em contextos diferentes.

A pluralidade é, portanto, a verdadeira universalidade humana.

O que esta perspectiva exige é uma mudança profunda de categoria. Não se trata apenas de substituir uma teoria por outra. Trata-se de substituir um tipo de pergunta por outro. A ciência deixou de perguntar “qual é a verdadeira natureza humana?” para perguntar “quais são os mecanismos que geram diferentes formas de ser humano?” Esta transição é epistemologicamente decisiva. E é eticamente indispensável.

Compreender a diversidade como fundamento tem consequências práticas. Significa abandonar avaliações baseadas em normas implícitas. Significa rejeitar pressupostos de que existe um modo correto e natural de sentir, agir, perceber ou decidir. Significa reconhecer que os erros de interpretação, de julgamento e de atribuição não são desvios raros, mas manifestações previsíveis de sistemas que operam por inferência e predição. Significa aceitar que a visão ocidental, WEIRD, analítica e individualista não representa a linha de base da humanidade, mas uma das suas variações possíveis. Significa compreender que a rigidez ideológica, longe de ser um modo puro de pensamento, é uma compressão patológica da nossa capacidade cognitiva de responder ao mundo com flexibilidade. E significa, acima de tudo, que qualquer projecto que pretenda refletir sobre o humano – científico, filosófico, político, social – só será sólido na medida em que incorporar esta pluralidade como ponto de partida e não como nota de rodapé.

O caminho está traçado. A psicologia do século XXI, a neurociência contemporânea e as ciências sociais interdisciplinares apontam para um modelo do humano fundado na variação, na construção, na aprendizagem e na cultura. Um humano que não é definido por uma essência, mas por possibilidades. Um humano que não é explicável por um único eixo, mas por camadas de história, corpo, contexto e experiência. Um humano que não cabe em categorias fáceis nem em teorias de simplicidade sedutora.
Um humano, enfim, que é muitos.

Depois de percorrermos este caminho, a conclusão deixa de ser tímida. Não se trata apenas de sugerir que talvez “seja possível” que existam variações entre pessoas ou que “eventualmente” as nossas teorias sobre a natureza humana precisem de ajustes. O que os dados disponíveis permitem afirmar, com segurança razoável, é mais forte, não existe base científica para continuar a falar de uma natureza humana única.

O que sabemos hoje sobre evolução, cérebro, emoção, cognição, cultura e desenvolvimento aponta consistentemente para a pluralidade. Não existe uma forma típica de sentir medo, culpa ou alegria. Não existe um modo universal de recordar o passado ou de antecipar o futuro. Não existe um padrão único de decisão racional. Não existe uma expressão facial que signifique sempre o mesmo em todas as pessoas. Não existe uma forma homogénea de reagir à perda, ao conflito, à ameaça ou à acusação social. O que existe são distribuições de possibilidades, configuradas por cadeias causais complexas que incluem biologia, ambiente, história de vida e contexto imediato.

Isto não significa que tenhamos já uma teoria definitiva sobre como estas múltiplas naturezas humanas se organizam. Aqui, sim, a prudência continua a ser indispensável. As propostas de cérebro preditivo, emoções construídas, redes entrançadas e mentes encarnadas são, em si mesmas, teorias que podem vir a ser corrigidas, refinadas ou parcialmente substituídas. Mas o ponto de não retorno está noutro lugar. Mesmo que os detalhes mudem, é muito improvável que regressemos a um modelo em que um único perfil psicológico possa ser erigido como essência humana.

Por isso, faz sentido distinguir dois níveis. No primeiro, negativo, o trabalho está feito, a teoria de uma natureza humana única foi, na prática, refutada. No segundo, positivo, continuamos a construir modelos sobre como funcionam, concretamente, as múltiplas naturezas humanas. Há incerteza sobre o melhor enquadramento teórico, mas há muito pouca dúvida de que o enquadramento antigo não funciona.

Uma reflexão honesta sobre o ser humano no século XXI tem de partir deste reconhecimento. Qualquer instituição, disciplina ou prática que continue a tratar o ser humano como um bloco homogéneo está a operar com uma ficção. Esta ficção pode ser confortável, pode ser retoricamente eficaz, pode simplificar decisões, mas já não é compatível com o que sabemos. Aceitar a pluralidade das naturezas humanas não é um luxo intelectual, é uma exigência mínima de rigor num tempo em que os próprios instrumentos científicos nos obrigam a olhar para a diferença como regra e não como desvio.

Se existe uma verdade científica robusta sobre a natureza humana, é esta:
não existe uma natureza humana singular. Existem naturezas humanas. E é essa multiplicidade que nos define.

 

Referências:

Barrett, L. F. (2017). How emotions are made: The secret life of the brain. HarperCollinsPublishers.

Barrett, L. F. (2020). Sete Lições e Meia sobre o Cérebro. Temas e Debates.

Corlett, P. R. (2019). Hallucinations and strong priors. Trends in Cognitive Sciences, 23(3), 204–216.

Darwin, C. (1859). On the Origin of Species by Means of Natural Selection. London: John Murray.

Henrich, J., Heine, Steven J., Norenzayan, Ara (2010). The weirdest people in the world? Behavorial and Brain Sciences, 33, 61-135.

Kuhn, T. S. (1962). The Structure of Scientific Revolutions. Chicago: University of Chicago Press.

Pessoa, L. (2022). The entangled brain: How perception, cognition, and emotion are woven together. MIT Press.

Popper, K. (2020). A Lógica da Pesquisa Científica. Editora Cultrix.

Russell, J. A. (1994). Is there universal recognition of emotion from facial expression? A review of cross-cultural studiesPsychological Bulletin, 115(1), 102–141. 

Russell, J. A. (2003) Core Affect and the Psychological Constrution of Emotion. Psychologial Review, Vol. 110, N.º 1, 145-172.

Sapolsky, R. M. (2018). Comportamento: A biologia humana no nosso melhor e pior. Temas e Debates.

Sapolsky, R. M. (2024). Determinado: Uma Ciência da vida sem Livre-Arbítrio. Temas e Debates.

Schopenhauer, A. (2022). A Arte de Vencer uma Discussão sem Precisar de ter Razão. Alma dos Livros.

Strevens, M. (2021). The Knowledge Machine. How an Unreasonable Idea Created Modern Science. Penguin Books.

Teufel, C., Subramaniam, N., Dobler, V., Pérez, J., Finnemann, J., Mehta, P. R., Goodyer, I. M., & Fletcher, P. C. (2015). Shift toward prior knowledge confers a perceptual advantage in early psychosis and psychosis-prone healthy individuals. Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America, 112(43), 13401–13406.

Yon, D. (2025). A Trick of the Mind, How the Brain Invents Your Reality. Cornerstone Press

Zmigrod, L. (2025). O Cérebro Ideológico, Uma Ciência Radical das Mentes Suscetíveis. D. Quixote.


Miguel Pereira - Reasonable Doubt

Mais publicações deste âmbito e de outros em Reasonable Doubt 

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Os Sentidos Invisíveis: porque continuamos a acreditar em Aristóteles e como o cérebro moderno nos mostra que o Mundo é muito mais do que cinco portas de entrada

Portugal, o País do Respeitinho: Quando a Crítica É Crime