A Impossibilidade de Uma Só Natureza Humana: Variação é a Norma
I – INTRODUÇÃO
A ideia de que existe uma natureza humana única,
estável e relativamente homogénea domina grande parte do imaginário jurídico,
filosófico e até científico do século XX. Atribuímos aos outros uma arquitetura
psicológica semelhante à nossa, supomos que reconhecemos emoções com um simples
olhar, acreditamos que percepções e memórias funcionam de modo uniforme nas
diferentes pessoas e culturas. Esta suposição de universalidade, confortável e
intuitiva, funciona como a gramática subterrânea de múltiplos discursos
normativos: do direito ao quotidiano, da política à educação.
Contudo, a investigação contemporânea em
neurociência, psicologia cultural, antropologia e ciências cognitivas
sucessivamente desmente esse pressuposto. O que a literatura científica revela,
com uma consistência impressionante, é algo distinto: variação é a norma.
O cérebro humano, longe de ser uma máquina padronizada, é um sistema plástico
que se forma e transforma em diálogo estreito com a cultura, a história
individual e as pressões sociais que o enquadram. Não existe um modelo único de
mente, nem um catálogo fixo de emoções, nem uma forma universal de interpretar
o mundo. Existem, antes, muitas naturezas humanas, plurais e
contextualmente moldadas.
Esta constatação não inaugura uma crise
epistemológica. Pelo contrário, abre a possibilidade de compreender a espécie
humana com maior precisão e rigor empírico. A ciência contemporânea aproxima-se
cada vez mais da conclusão de que a diversidade comportamental, emocional e
cognitiva não é ruído a eliminar ou excepção a tolerar. É material constitutivo
da própria vida mental. Quando o direito, a política ou a moral partem do
pressuposto de que todos percebem, sentem e agem com base no mesmo repertório
de mecanismos, partem de uma premissa falsa. E uma premissa falsa, ainda que
bem-intencionada, produz modelos explicativos frágeis, interpretações
enviesadas e julgamentos errados.
O presente ensaio tem um objetivo simples e ao
mesmo tempo ambicioso: expor de forma clara, rigorosa e empiricamente
fundamentada as razões científicas pelas quais não podemos falar de “a”
natureza humana, mas sim de múltiplas naturezas humanas. Será um percurso
interdisciplinar, apoiado nos contributos de Lisa Feldman Barrett, Luiz Pessoa,
James Russell, Joseph Henrich, Robert Sapolsky, Daniel Yon, Christoph Teufel e
outros autores centrais. Não se trata de propor uma teoria alternativa
unificada sobre como o ser humano funciona. Trata-se de mostrar que a própria
ideia de funcionamento uniforme é cientificamente insustentável.
O argumento desenvolve-se em quatro etapas.
Primeiro, analisaremos como o cérebro humano, longe de decifrar o mundo de
forma directa, constrói percepções e emoções a partir de processos preditivos e
de aprendizagem cultural. Segundo, examinaremos as implicações desta construção
para a diversidade emocional: não apenas diferentes culturas categorizam
emoções de modos distintos, mas indivíduos dentro da mesma cultura sentem e
expressam emoções de forma idiossincrática. Terceiro, mostraremos como esta
variação se estende a domínios cognitivos fundamentais, desde a atribuição de
estados mentais à memória, passando pela percepção e pela tomada de decisão.
Por fim, veremos como traços individuais, estilos cognitivos e dinâmicas
sociais interagem para produzir padrões comportamentais profundamente
distintos, impossíveis de integrar numa definição singular de “ser humano”.
Ao longo das últimas décadas, a investigação
avançou com uma força acumulada que dificilmente permite regressos nostálgicos
ao universalismo psicológico. O corpo de evidência é robusto: cérebros
diferentes, em corpos diferentes, inseridos em histórias diferentes, produzem
mundos mentais diferentes. Se isto é verdade, e os dados indicam que é, então o
mais prudente é abandonar as ficções reconfortantes e adoptar um quadro
interpretativo mais compatível com a ciência contemporânea. Um quadro onde a
diversidade não é uma anomalia, mas a matéria-prima da condição humana.
A ideia de que existe uma natureza humana única,
estável e previsível colide de frente com a própria lógica da evolução. Desde
Darwin que sabemos que a variabilidade não é um ruído incômodo à volta de um
padrão ideal, é a condição de possibilidade da vida tal como a conhecemos. Sem
diferenças entre organismos, não haveria sobre o que a selecção natural pudesse
operar, não haveria adaptação, não haveria história evolutiva. Se cada geração
reproduzisse a anterior como uma cópia quase perfeita, o mais pequeno choque
ambiental teria sido suficiente para extinguir a espécie.
Quando olhamos para o ser humano com esta lente,
a noção de uma pessoa normal deixa de fazer sentido. Aquilo a que chamamos
normalidade não é uma essência, é uma estatística. É a forma como uma certa
sociedade, num certo momento histórico, decide desenhar uma curva em torno de
fenómenos que são intrinsecamente diversos. A diversidade comportamental,
cognitiva e emocional não é um acidente, é o mecanismo através do qual a
espécie humana se adaptou, se transformou e sobreviveu. A biologia não promete
estabilidade, promete variação.
A ciência contemporânea do cérebro, tal como tem
sido sintetizada por autores como Daniel Yon, apenas reforça esta intuição
evolutiva. A variabilidade não se limita à morfologia do corpo, atravessa o
tecido neuronal e manifesta-se na forma como percebemos, prevemos, sentimos e
decidimos. Não há dois cérebros organizados exatamente da mesma forma, não há
duas histórias de desenvolvimento nervoso idênticas, não há dois percursos de
aprendizagem coincidentes. Mesmo gémeos monozigóticos, criados no mesmo
ambiente, divergem na forma como respondem ao stress, ao risco, ao conflito, ao
apego, à perda. A ideia de que é possível falar de “a” natureza humana no
singular é, do ponto de vista evolutivo, uma contradição nos seus próprios
termos.
Se aceitarmos com seriedade esta perspectiva,
desaparece o fundamento para todas as afirmações que pressupõem uma reacção
humana típica às situações da vida. Não faz sentido dizer que qualquer pessoa
reagiria “assim ou assado” diante da ameaça, do luto, da humilhação ou da
acusação. O que existe é um leque de respostas possíveis, moduladas por factores
genéticos, experiências precoces, cultura, contexto social, condições
materiais, estados fisiológicos momentâneos e histórias de vida únicas. O que
Darwin e os seus herdeiros intelectuais nos lembram é simples e desconfortável,
a espécie humana só existe porque não existe uma natureza humana única.
II – O CÉREBRO COMO MÁQUINA DE VARIAÇÃO: PERCEPÇÃO, PREDIÇÃO E CONSTRUÇÃO
Nos últimos vinte anos, uma transformação
conceptual silenciosa alterou de modo irreversível a forma como compreendemos o
cérebro humano. A visão clássica – segundo a qual o cérebro seria um órgão
passivo, dedicado a receber sinais, processá-los e gerar respostas – foi
substituída por um modelo radicalmente distinto. Hoje, a literatura científica convergiu
para a ideia de que o cérebro é, acima de tudo, um sistema preditivo,
cuja função principal não é reagir ao mundo, mas antecipá-lo. Esta mudança,
decisiva para todo o argumento que aqui desenvolvemos, tem implicações
profundas: se o cérebro constrói continuamente o mundo que percebemos, então
não existe uma única forma “correta” de ver, sentir ou interpretar; existem
múltiplas, dependentes das experiências e aprendizagens de cada organismo.
Lisa Feldman Barrett tem sido uma das autoras
mais influentes nesta reconfiguração. Do ponto de vista neurocientífico, a
percepção não é um reflexo transparente dos estímulos externos. É o resultado
de uma inferência automática, onde o cérebro combina sinais sensoriais ruidosos
com previsões extraídas de experiências passadas. O que vemos, ouvimos ou
sentimos corresponde à hipótese que o cérebro considera mais plausível num
determinado instante. Dito de outra forma, percepcionamos o mundo provável,
não o mundo tal como é. Esta característica – essencial ao funcionamento
adaptativo – introduz um elemento inevitável de variação: cérebros com
histórias diferentes constroem interpretações diferentes.
A investigação de Daniel Yon oferece uma
demonstração particularmente clara desta dinâmica. A percepção auditiva, por
exemplo, apresenta muitos dos mesmos fenómenos que observamos na visão. Sons
ambíguos como o célebre “Yanny/Laurel” ou as gravações que parecem alternar
entre “green needle” e “brainstorm” mostram que o cérebro não “ouve” o som
bruto. Seleciona uma interpretação com base em expectativas, contexto, memória
e linguagem. Experiências elegantemente desenhadas revelam ainda que o córtex
frontal antecipa os sons prováveis antes de estes chegarem às regiões
auditivas, modulando-as. Assim, aquilo que ouvimos depende da forma como o
cérebro ajusta a relação entre previsão e evidência. Dois indivíduos expostos
ao mesmo estímulo acústico podem, sem qualquer patologia, chegar a percepções
divergentes.
Esta variabilidade não é um defeito cognitivo. É
a solução que a evolução encontrou para permitir que o organismo se adapte a
ambientes imprevisíveis. Em contextos de elevada incerteza, sistemas puramente
reactivos seriam demasiado lentos e ineficazes. O cérebro humano, ao contrário,
aumenta a utilidade do sinal sensorial introduzindo-lhe uma componente
interpretativa, estocástica e culturalmente filtrada. Isso significa que
diferentes ambientes de desenvolvimento – desde padrões linguísticos a normas
sociais, desde práticas educativas a microclimas emocionais – esculpem
diferentes repertórios de previsão. E estes repertórios guiam a percepção, o
comportamento e até as decisões morais.
Luiz Pessoa vai ainda mais longe ao defender que
não existe uma separação nítida entre processos “cognitivos” e “emocionais”. O
cérebro funciona em redes amplas e interligadas onde motivação, atenção,
aprendizagem, emoção e acção se entrelaçam continuamente. Assim, não podemos
falar de um módulo isolado para percepção, decisão ou afeto. Cada uma destas
funções emerge de interações distribuídas entre múltiplas regiões. Se a
arquitetura funcional é composta por redes complexas e dinamicamente
configuráveis, não há razão para supor que todos os cérebros as organizam da
mesma forma. A própria variabilidade interindividual na conectividade neuronal
(incluindo conectividade funcional em repouso) já permite antecipar diferenças
em estilos cognitivos, ritmos emocionais e padrões de reactividade.
Soma-se a isto o facto de que os cérebros não
apenas percepcionam de modos diferentes. Aprendem diferente, recordam
diferente, sentem diferente. E esta diversidade decorre não apenas
de factores culturais ou sociais, mas de uma característica mais fundamental: o
cérebro é uma máquina altamente plástica, permanentemente moldada pela
experiência. A sua função não é impor uniformidade, mas acomodar e amplificar
variações. Os mecanismos que utilizamos para segmentar palavras, interpretar
expressões, inferir intenções ou prever comportamentos são calibrados pelas
circunstâncias particulares de cada vida.
A investigação com bebés ilustra esta
plasticidade desde o início da vida. Mesmo antes de compreenderem a linguagem,
os bebés identificam padrões estatísticos na fala. Aprendem a segmentar
palavras rastreando probabilidades de transição entre sons. Mas estas
probabilidades não são universais. Variam entre línguas e dialetos, e os
cérebros infantis adaptam-se rapidamente ao padrão específico da comunidade
linguística em que nascem. Duas crianças expostas a dietas linguísticas
diferentes constroem mapas fonológicos distintos, que depois condicionam a
forma como percebem sons durante toda a vida. O mundo sensorial é, desde o
berço, um espaço de aprendizagem culturalmente guiada.
Estas dinâmicas tornam claro que a diversidade
humana começa muito antes de qualquer construção social explícita. É uma
consequência directa do modo como o cérebro opera. Sendo a percepção uma
inferência, a emoção uma construção, a memória uma reconstrução e a acção uma
aposta probabilística no futuro, não há como esperar que dois cérebros
distintos produzam representações idênticas. E não há como pretender que esta
heterogeneidade seja eliminável. Pelo contrário, ela é constitutiva da espécie.
Esta constatação abala a hipótese de uniformidade
que, noutros domínios, ainda se assume como natural. Se diferentes cérebros
constroem diferentes percepções mesmo em condições controladas de laboratório,
torna-se evidente que a variação será ainda maior em contextos complexos da
vida real. Cada ser humano ocupa uma posição distinta numa ecologia de
previsões, aprendizagens, memórias e expectativas. E, por isso, a diversidade
não é uma excepção estatística. É a linha de base.
A ciência do cérebro acrescenta uma camada
decisiva a esta crítica à natureza humana única. O cérebro não é um espelho que
recebe passivamente estímulos do mundo, é um órgão preditivo, ocupado em
antecipar constantemente o que está prestes a acontecer. Percepção, memória e
emoção não são registos transparentes da realidade, são hipóteses que o cérebro
formula e actualiza à luz da experiência. Vemos, recordamos e sentimos o mundo
através de modelos internos que são sempre provisórios e que variam de pessoa
para pessoa.
Quando Yon mostra que o cérebro é, na prática,
uma máquina de previsão, está a desmontar a ideia de que exista uma gramática
universal da experiência humana. Se cada indivíduo constrói as suas próprias
expectativas a partir da sua história de interacções, então a forma como cada
um percebe perigo, reconhecimento, rejeição, ameaça ou alívio não pode ser
reduzida a um padrão único. O que é óbvio para um organismo treinado num certo
ambiente pode ser opaco para outro. O que é sentido como humilhação por alguém
pode ser interpretado como indiferença por outro, e assim sucessivamente.
Lisa Feldman Barrett leva esta visão até às
emoções. Em vez de emoções pré-definidas, com circuitos fixos e expressões
universais, Barrett descreve um sistema nervoso que constrói instâncias
emocionais a partir de ingredientes básicos, como sensações corporais,
memórias, conceitos aprendidos e contexto social. A tristeza que um indivíduo
sente não é a mesma tristeza que outro experimenta, ainda que usem a mesma
palavra. A expressão facial que num rosto sinaliza medo, noutro pode ser
concentração ou fadiga. Para Barrett, quem tenta ler emoções directamente do
rosto está a fazer um exercício de adivinhação, que pode ter mais ou menos
sucesso, mas continua a ser adivinhação.
Luiz Pessoa reforça esta desconstrução, ao
descrever o cérebro como uma rede entrançada em que razão, emoção, motivação e
percepção estão profundamente entrelaçadas. Não existem módulos puros de raiva,
de culpa ou de intenção que possam ser observados, medidos e traduzidos
directamente em categorias psicológicas. O que existe é um fluxo contínuo de
actividade em rede, que combina estados corporais, expectativas, contexto
social e história passada. Esta arquitetura entrançada do cérebro torna ainda
mais problemática qualquer tentativa de falar de um funcionamento emocional ou
racional típico.
A convergência destes autores aponta sempre na
mesma direcção, o ser humano não possui uma forma padrão de ver, sentir e
interpretar o mundo. O que temos são múltiplas naturezas humanas, configuradas
por trajectórias biológicas e sociais irrepetíveis. O cérebro preditivo não
produz réplicas de um modelo ideal, produz variações contínuas sobre o tema
humano.
III – EMOÇÃO COMO CONSTRUÇÃO E VARIAÇÃO: ENTRE A AMBIGUIDADE DE RUSSELL E A
CONSTRUTIVIDADE DE BARRETT
Se a percepção é construída e se a variação
interindividual é um traço estrutural do cérebro humano, seria improvável que
as emoções escapassem a esta mesma lógica. Contudo, durante grande parte do
século XX, prevaleceu uma visão distinta: a ideia de que emoções como tristeza,
raiva, medo, surpresa ou nojo teriam expressões universais, inatas e
reconhecíveis em qualquer cultura ou indivíduo. Este paradigma, associado
sobretudo a Paul Ekman, moldou décadas de investigação e tornou-se
particularmente influente em áreas aplicadas, incluindo práticas forenses e
jurídicas. A promessa era sedutora: se as emoções se manifestam de forma
universal, então é possível inferir estados internos a partir de sinais
externos. Contudo, um exame cuidadoso da evidência disponível revela que esta
promessa nunca foi devidamente cumprida.
Carroll Izard, James Russell e muitos outros têm
mostrado que as bases empíricas da tese da universalidade são frágeis. Russell,
em particular, expôs com rigor metodológico como a maior parte dos estudos que
supostamente confirmavam o carácter universal das expressões emocionais
assentavam em procedimentos artificiais, culturalmente enviesados e
profundamente afastados das condições naturais da vida real. O problema que
Russell identifica não é meramente técnico. É estrutural. Quando os estudos
utilizam métodos de “escolha forçada”, em que os participantes têm de seleccionar
uma emoção a partir de uma lista pré-definida, o desenho experimental induz o
resultado pretendido. Quando se apresentam rostos estilizados ou fotografias
altamente prototípicas, removendo ambiguidade e contexto, o próprio estímulo já
não é representativo da expressão humana quotidiana. E quando os participantes
recebem uma narrativa ou rótulo emocional antes de ver o rosto, a interpretação
torna-se uma tarefa de correspondência guiada, não um reconhecimento
espontâneo.
O ponto decisivo da crítica de Russell é que,
quanto mais ecológica a metodologia, menor é a convergência nos resultados.
Quando se observam expressões naturais, quando não há pistas linguísticas ou
narrativas prévias, quando se recolhem descrições livres em vez de escolhas
forçadas, a alegada universalidade desvanece-se. A variabilidade não é
marginal. É central. E quando se estudam culturas não expostas à categorização
emocional ocidental, o padrão torna-se ainda mais evidente: não há consenso
global sobre o significado das expressões faciais.
Mas se Russell desmonta a universalidade, é Lisa
Feldman Barrett quem fornece a teoria alternativa mais robusta para explicar o
fenómeno: a emoção não é um módulo biológico pré-programado. É uma
construção, produto da interacção entre estados corporais, aprendizagem
cultural, linguagem, memória e contexto. Segundo Barrett, o cérebro não deteta
emoções. Prediz emoções, inferindo-as a partir de padrões sensoriais que
só ganham significado através de categorias previamente aprendidas. Tal como na
percepção visual ou auditiva, a emoção é uma hipótese que o cérebro formula, e
não um objecto que descobre.
Esta posição tem uma consequência particularmente
relevante para o tema da interpretação de expressões faciais. Para Barrett, não
existe qualquer expressão emocional que, por si só, tenha um significado
universal. A mesma expressão – um franzir de sobrancelhas, um sorriso, um olhar
fixo – pode significar emoções completamente diferentes em pessoas distintas,
em momentos distintos e em contextos distintos. Um sorriso pode sinalizar
simpatia, mas também hostilidade, submissão, nervosismo, embaraço ou mesmo dor.
O que nós designamos como “leitura” de expressões não passa, na prática, de um
acto de adivinhação narrativa, guiado por expectativas culturais e por
pressupostos implícitos. Podemos acertar por coincidência, mas não porque
exista uma correspondência estável entre expressão e emoção.
A convergência entre Russell e Barrett é clara:
ambos rejeitam a ideia de que o rosto humano seja um código emocional
universal. A divergência é igualmente fecunda: Russell concentra-se na
fragilidade metodológica da tese universalista, Barrett oferece o modelo
teórico que explica essa fragilidade. Enquanto Russell demonstra que as
expressões são ambíguas e culturalmente interpretadas, Barrett demonstra porque
é inevitável que assim seja, dado o funcionamento inferencial do cérebro.
Uma das manifestações mais persistentes do mito
da natureza humana única é a crença em expressões emocionais universais. A
ideia de que existe um catálogo fechado de expressões faciais que
corresponderiam, de modo quase mecânico, a emoções internas específicas. Num
imaginário ainda dominante, um certo tipo de cara seria sempre tristeza, outro
seria sempre raiva, outro seria sempre medo, independentemente da pessoa, da
cultura ou do contexto.
A literatura empírica já desmantelou de forma
convincente esta visão simplista. James Russell mostrou que a pretensa
universalidade das emoções básicas não resiste a análises sistemáticas. A
variabilidade cultural e individual é demasiado grande para ser encaixada em
meia dúzia de rótulos invariáveis. Lisa Feldman Barrett leva esta crítica mais
longe ao mostrar que, mesmo dentro da mesma cultura, a mesma expressão num
rosto pode corresponder a estados internos radicalmente diferentes. O que num
indivíduo é vergonha, noutro pode ser dor física, noutro ainda pode ser uma
tentativa aprendida de mostrar neutralidade.
Se aceitarmos esta perspectiva, torna-se claro
que não existe um código secreto inscrito no rosto que permita aceder ao
interior das pessoas. A expressão emocional não é um reflexo directo de um
estado oculto, é uma acção situada, moldada por convenções sociais,
expectativas culturais, aprendizagens precoces e estratégias de autorregulação.
Em muitas situações, o que vemos no rosto é aquilo que a pessoa aprendeu que é
seguro, adequado ou eficaz mostrar naquele contexto específico, e não um
espelho transparente do que sente.
Quando alguém tenta ler tristeza, arrependimento,
frieza, empatia ou mentira a partir de uma expressão, está a projectar modelos
próprios sobre um fenómeno ambíguo. Em certas circunstâncias, essa leitura pode
aproximar se do que está a acontecer, em muitas outras pode afastar se por
completo. Se duas pessoas, com histórias emocionais diferentes, olham para o
mesmo rosto, é provável que vejam coisas distintas. Uma verá culpa, outra verá
medo, outra verá controlo, outra verá apenas alguém cansado.
Na prática, isto significa que não há base
científica para utilizar expressões emocionais como se fossem indicadores
universais e fiáveis da vida interna. As emoções são construídas, e as
expressões, também. A variabilidade é a regra, e não a excepção. Falar de
natureza humana no singular, neste domínio, é confundir os atalhos da
psicologia intuitiva com o estado real da ciência.
Aqui, a teoria do cérebro em rede de Luiz Pessoa
reforça esta conclusão. Se emoção e cognição emergem de redes plurais e
dinâmicas, não há lugar para sistemas emocionais fixos, encapsulados e
imutáveis. A variabilidade é o resultado esperado de um sistema complexo cuja
função não é reproduzir padrões invariantes, mas adaptar-se continuamente a
circunstâncias variáveis. A emoção não é um reflexo, é uma construção
probabilística.
Este quadro é ainda mais solidificado quando
consideramos a investigação contemporânea sobre erro, ambiguidade e falha de
inferência. Os trabalhos de Christoph Teufel sobre percepção preenchida
mostram que cérebros com tendências para confiar em excesso nas suas próprias
expectativas não apenas veem o mundo de forma distinta, como preenchem o que
não está lá. Os estudos de Phil Corlett demonstram que os mesmos mecanismos
preditivos que sustentam a percepção quotidiana podem, quando desregulados, dar
origem a fenómenos tão extremos quanto alucinações. E Daniel Yon mostrou que
até em cérebros saudáveis as hipóteses internas chegam antes do estímulo,
moldando-o.
Estas investigações revelam um ponto fundamental:
os cérebros não respondem ao mundo de forma neutra, respondem de forma
calibrada por experiências passadas, categorias internalizadas e narrativas
culturalmente adquiridas. É por isso que tentar inferir a emoção de alguém a
partir de uma expressão facial é epistemicamente arriscado. Para Barrett, não
há uma leitura privilegiada do rosto humano, apenas inferências que podem ou
não coincidir com a experiência interna de quem as expressa. E é por isso que,
mesmo dentro da mesma cultura, dois indivíduos podem interpretar a mesma
expressão de formas radicalmente diferentes. Para Russell, esta variabilidade
não é um obstáculo técnico. É a realidade empírica do fenómeno.
As implicações filosóficas desta visão são
profundas. A emoção deixa de ser um fenómeno que o observador pode “detetar”,
passando a ser um fenómeno que apenas pode ser inferido com base em múltiplas
camadas de informação contextual. Aqui, a emoção aproxima-se do significado
linguístico, do qual não existe decifração independente do contexto. O rosto
humano não é um texto universal. É uma superfície interpretativa cujo sentido
depende do léxico emocional aprendido.
Assim se completa a transição conceptual iniciada
na secção anterior. Se o cérebro prevê antes de sentir, se constrói antes de
detetar, então a emoção não é uma essência que habita o corpo. É um
acontecimento emergente, plural, moldado por histórias individuais e por
ecologias culturais específicas. Não existe “a” forma humana de sentir. Existem
muitas, e estas variam não apenas entre culturas, mas entre indivíduos. A
multiplicidade não é ruído. É estrutura.
IV – DESENVOLVIMENTO, ADAPTAÇÃO E CULTURA: AS ECOLOGIAS DA VARIAÇÃO HUMANA
Grande parte das nossas instituições, discursos
públicos e decisões quotidianas ancora-se numa confiança implícita na
experiência pessoal. Acreditamos que, por termos vivido o suficiente, sabemos
como as pessoas são, como reagem, o que é normal ou anormal, previsível ou
surpreendente. Esta crença é reforçada por narrativas culturais que valorizam o
senso comum como critério de verdade. A experiência passa a ser tratada como se
fosse um instrumento epistémico robusto, quando na realidade é um conjunto de
memórias parciais, enviesadas e profundamente localizadas.
A antropologia e a psicologia cultural mostram,
há décadas, que aquilo a que chamamos experiências típicas não são universais,
são experiências de um certo grupo, em certas condições sócio económicas,
históricas e culturais. Joseph Henrich sintetizou esta evidência ao mostrar que
muitos dos fenómenos que tomamos por universais são, na realidade,
características de sociedades ocidentais, educadas, industrializadas, ricas e
democráticas. O comportamento humano WEIRD (Western, Educated, Industrialized,
Rich, Democratic) é estatisticamente anómalo à escala da espécie, mas continua
a ser tratado como padrão.
Isto tem consequências profundas para qualquer
tentativa de falar de natureza humana. Quando alguém diz que qualquer pessoa no
seu perfeito juízo teria reagido de uma certa maneira, está quase sempre a
falar de pessoas parecidas consigo, em contextos parecidos com o seu. A
experiência que serve de régua é, em grande medida, biográfica e culturalmente
situada. Não é “a” experiência humana, é a experiência de um segmento estreito
da humanidade.
A psicologia cognitiva acrescenta uma nova camada
de fragilidade a esta confiança. Sabemos hoje que a memória é reconstrução, e
não reprodução literal de acontecimentos. Sabemos que a percepção é inferência,
mais do que cópia. Sabemos que a mente humana sofre de enviesamentos de
confirmação, heurísticas de disponibilidade e ilusões de causalidade que
distorcem a forma como interpretamos o mundo. A experiência não é um registo
neutro do que aconteceu, é uma narrativa que vai sendo ajustada para preservar
coerência interna.
Quando juntamos estas peças, o quadro torna-se
nítido, a experiência pessoal é um recurso valioso para orientar a
sobrevivência quotidiana, mas é um péssimo fundamento para formular leis gerais
sobre o ser humano. A noção de que existe uma natureza humana única assenta
precisamente neste equívoco, extrapola-se, a partir de um conjunto de vivências
localizadas, um modelo universal de funcionamento. O que a ciência
contemporânea faz é retirar essa pretensão de universalidade, sem desvalorizar
a experiência, mas recolocando-a no seu devido lugar, como um ponto de vista
entre muitos, e não como medida da diversidade humana.
Se a percepção e a emoção são processos
construídos, inferenciais e culturalmente calibrados, então a diversidade
humana não é uma consequência acidental das diferenças individuais. É uma
consequência necessária da própria arquitetura biológica e social da espécie. A
variabilidade começa cedo, molda-se ao longo de toda a vida e multiplica-se à
medida que os indivíduos se inserem em ecologias culturais distintas. A partir daqui
a pergunta relevante já não é “porque é que os humanos diferem tanto uns dos
outros”, mas antes “como seria possível que fossem iguais”.
A neurociência contemporânea confirma esta
intuição. Luiz Pessoa mostra de forma sistemática que o cérebro humano não é um
conjunto de módulos especializados que respondem de forma idêntica em todos os
indivíduos. O cérebro é uma rede dinâmica que se autoreorganiza ao longo do
tempo, ajustando-se às pressões ambientais, às necessidades do organismo e às
interacções sociais. A variabilidade não é uma anomalia estatística. É o produto
lógico de sistemas altamente plásticos, sensíveis às condições externas e internas.
Se cada cérebro é o resultado de uma história singular de experiências,
categorias, aprendizagens e contextos, nenhuma teoria coerente poderia esperar
que o funcionamento psicológico fosse uniforme.
Esta plasticidade é particularmente evidente no
desenvolvimento. Desde a infância, a exposição a linguagens distintas, a
padrões afetivos diferentes, a ecologias sociais mais ou menos previsíveis ou
mais ou menos violentas, produz cérebros calibrados para mundos distintos. A
neurociência do desenvolvimento é inequívoca: não nascemos com um repertório
emocional, cognitivo ou perceptivo totalmente formado. Nasce-se com uma
arquitetura de possibilidades, que se actualiza à medida que o organismo
procura interpretar e sobreviver ao ambiente. A proximidade física dos
cuidadores, a regularidade das interacções, a previsibilidade das rotinas, a
diversidade sensorial, a exposição à linguagem, as normas culturais sobre
comportamento e emoção – tudo isto influencia a forma como o cérebro aprende a
interpretar o mundo.
Quando se passa do nível individual para o nível
populacional, as implicações tornam-se ainda mais evidentes. Joseph Henrich
mostrou que muitas das suposições consideradas universais na psicologia
ocidental derivam na realidade de amostras culturalmente anómalas: populações
WEIRD. Estas populações representam apenas uma fração mínima da diversidade
humana e, no entanto, tornaram-se o padrão implícito daquilo que se pensava ser
“universal”. Estudos de percepção visual, moralidade, raciocínio, cooperação,
individualismo, interpretação emocional e tomada de decisão revelam uma
heterogeneidade profunda entre culturas. O que parecia ser uma propriedade da
espécie era, afinal, um artefacto cultural. A “psicologia humana” era, na
prática, a psicologia de ocidentais escolarizados.
Henrich revela algo ainda mais fundamental. As
culturas não produzem apenas diferenças de hábitos ou crenças. Produzem diferenças
cognitivas. Populações que valorizam a interdependência têm mecanismos
atencionais distintos das que valorizam o individualismo; sociedades onde a
honra masculino-familiar medeia conflitos desenvolvem sensibilidades emocionais
distintas das sociedades que priorizam a manutenção da ordem institucional;
culturas que promovem raciocínio analítico obtêm padrões de categorização diferentes
das culturas que promovem raciocínio holístico. Nada disto é superficial. São
modos alternativos de ver o mundo – literalmente – que moldam a forma como os
cérebros codificam e decodificam a experiência.
É nesta confluência entre plasticidade neuronal e
diversidade cultural que se compreende o argumento decisivo: não existe um modo
único de ser humano. Existem muitos modos possíveis, moldados por ecologias
distintas. Tal como diferentes ambientes selecionam diferentes estratégias
adaptativas em espécies animais, diferentes ecologias culturais moldam
diferentes expressões da cognição humana.
A estas variações soma-se outro factor
determinante: o efeito cumulativo da biologia social, tal como descrito por
Robert Sapolsky. Para Sapolsky, o comportamento humano não pode ser
compreendido apenas a partir de mecanismos cognitivos ou emocionais isolados. É
o resultado de processos que se desenrolam em escalas temporais distintas – segundos,
horas, anos, décadas e milénios. Num mesmo indivíduo coexistem influências
genéticas, hormonais, desenvolvimentais, sociais, culturais e evolutivas, todas
elas interligadas. A tentativa de reduzir a variabilidade humana a um conjunto
limitado de traços universais ignora esta complexidade estrutural.
Uma das contribuições mais relevantes de Sapolsky
é demonstrar que a sensibilidade ao stress, a impulsividade, a agressividade, a
empatia e o autocontrolo são profundamente moldados por experiências precoces e
por factores socioeconómicos. Crianças expostas a ambientes instáveis,
imprevisíveis ou violentos desenvolvem sistemas neuroendócrinos ajustados a
ecologias de ameaça; crianças expostas a ambientes seguros, ricos em
previsibilidade e afeto desenvolvem sistemas ajustados à cooperação e à
regulação emocional. As diferenças não são patológicas. São adaptativas num
dado contexto. A variabilidade é, novamente, a norma.
Sapolsky mostra ainda que as culturas produzem
ambientes biológicos distintos. Sociedades mais hierárquicas induzem padrões
diferentes de activação do eixo do stress; sociedades mais igualitárias modulam
de forma distinta a agressividade e a confiança. O comportamento humano é
sempre a intersecção entre biologia e ecologia social. Não existe um padrão
universal de motivação, de moralidade ou de reacção emocional. Existem
respostas calibradas à ecologia vivida.
É também por esta razão que a tentativa de
extrapolar leis universais do comportamento humano a partir de contextos
reduzidos – por exemplo, estudantes universitários ocidentais – produz
inevitavelmente conclusões enviesadas. A variabilidade humana não é um
obstáculo ao progresso científico. É o objecto de estudo. E a ciência
contemporânea tem vindo a reconhecer que todas as tentativas de reduzir essa
variabilidade a um modelo único incorrem em imprecisão conceptual e erro
empírico.
O retrato que emerge é claro: cérebros
diferentes, desenvolvidos em culturas diferentes, expostos a ecologias sociais
diferentes, interpretam o mundo de maneiras diferentes. Estas diferenças não
são desvios. São expressões legítimas da plasticidade humana. E constituem uma
refutação directa da tese de que existe uma natureza humana única e estável que
se manifesta de forma idêntica em todos os contextos. A unidade da espécie não
reside na uniformidade, mas na capacidade de gerar múltiplas configurações de resposta.
A partir deste ponto, torna-se natural perguntar
o que une então esta diversidade. Se não existe uma natureza humana singular, o
que existe? A resposta encontra-se no modo como o cérebro funciona: através de
sistemas preditivos que constroem categorias, inferem significados, calibram
expectativas e ajustam comportamentos com base na história individual e colectiva.
A universalidade não está no conteúdo das emoções, percepções ou crenças, mas
no mecanismo que permite que diferentes conteúdos emergem. A diversidade humana
é, paradoxalmente, o produto de um mecanismo universal: a inferência preditiva
aplicada a ecologias diferenciadas.
V – DESINCRUSTAR O MITO DA ESSÊNCIA HUMANA: LÓGICA, BIOLOGIA E PLURALIDADE
V.1. Mudança de paradigma, entre intuição evolutiva e ciência da mente
Os grandes filósofos da ciência lembram-nos que
as teorias não caem apenas porque foram refutadas de forma impecável num quadro
abstrato, caem porque se tornam insustentáveis face à acumulação de anomalias.
Popper recorda que o progresso científico passa pela refutação de teorias que
já não resistem ao confronto com os dados. Kuhn acrescenta que os paradigmas
não se rendem elegantemente à força da razão, resistem, defendem-se,
reorganizam-se, até que a dissonância entre o que prometem explicar e o que
efectivamente conseguem descrever se torna demasiado grande para ser ignorada.
A ficção de uma natureza humana única encontra-se
hoje neste ponto de saturação. Já não é apenas uma hipótese teoricamente
frágil, é uma hipótese empiricamente indefensável. Biologia evolutiva,
neurociência, psicologia, antropologia e ciências cognitivas convergem na ideia
de que a variabilidade é estrutural, que as mentes humanas são múltiplas nas
suas configurações, que os contextos moldam profundamente o que é vivido e que
não existe um molde psicológico único em que possamos encaixar todos os
indivíduos.
Schopenhauer lembraria que não basta ter razão, é
preciso usar a retórica certa no momento certo. Strevens diria que a ciência
real sempre avançou numa mistura de rigor e psicologia social. Neste contexto,
a intuição evolutiva sobre a importância da variabilidade tem uma função
estratégica relevante. É simples, facilmente comunicável e funciona como porta
de entrada para aceitar que talvez não seja legítimo continuar a falar de
natureza humana no singular. A intuição de Darwin abre espaço para que as teorias
mais sofisticadas da neurociência construtivista sejam levadas a sério por quem
não vive esse debate técnico por dentro.
Esta combinação entre intuição evolutiva e
ciência da mente oferece uma narrativa poderosa, não existe uma natureza humana
única, existem naturezas humanas, múltiplas, evolutivamente moldadas e
culturalmente configuradas. O paradigma antigo, que supunha um sujeito
universal com respostas previsíveis, deixa de ter onde se apoiar. Um novo
paradigma, mais modesto e mais exigente, começa a desenhar-se, aquele que parte
da pluralidade como dado de base e que vê com desconfiança qualquer formulação
demasiado confiante sobre o que “o ser humano” é ou faz em geral.
A ideia de que existe uma “essência humana” fixa,
reconhecível e universal continua a exercer um fascínio conceptual persistente.
É uma promessa de simplicidade num domínio onde tudo parece complexo, instável,
contingente. É também uma herança de tradições filosóficas e religiosas que
procuraram, durante séculos, definir o humano através de características
invariantes – racionalidade, moralidade, linguagem, consciência, simbolismo.
Contudo, à luz da ciência contemporânea, esta visão apresenta-se como insustentável.
Não porque falte uma unidade biológica à espécie, mas porque os mecanismos que
geram a experiência humana são intrinsecamente variáveis, contextuais, plurais.
O que a ciência revela não é um centro fixo, mas um conjunto de processos que
produzem diferença.
V.2. O equívoco da uniformidade: quando a procura
de ordem cria ficções
A tese de uma natureza humana única tende a
apoiar-se num raciocínio circular. Parte-se da inferência intuitiva de que os
humanos “parecem” semelhantes entre si – têm corpos semelhantes, cérebros
semelhantes, necessidades semelhantes – e extrapola-se que a mente também deve
funcionar de forma semelhante em todos. O problema é que semelhante não é
igual; e semelhante em termos anatómicos não implica semelhante em termos
funcionais.
A psicologia clássica caiu repetidamente nesta
armadilha. Procurou identificar emoções básicas universais, expressões faciais
universais, mecanismos morais universais, fases cognitivas universais,
categorias perceptivas universais. A atracção pela universalidade é
compreensível, mas metodologicamente enganadora. Como Lisa Feldman Barrett
demonstra, a suposição de que emoções têm assinaturas biológicas e faciais
invariantes foi sustentada mais pela força retórica de tradições académicas do
que por evidência empírica sólida. Quando se examinam as variações entre
indivíduos, grupos e culturas, as emoções revelam-se construções emergentes,
calibradas pela aprendizagem e pelo contexto.
Esta crítica não se limita à emoção. James
Russell mostrou, anos antes, que os observadores não interpretam expressões
faciais como janelas transparentes para estados emocionais internos, mas sim
como estímulos ambíguos que exigem inferência contextual. A mesma expressão
pode significar emoções diferentes para indivíduos diferentes, mesmo dentro da
mesma cultura. Barrett vai mais longe: ler emoções através de expressões não é
um exercício de deteção, mas de adivinhação. A precisão depende do conhecimento
prévio, das expectativas culturais e da relação social entre observador e
observado. A ideia de que existe um léxico universal de expressões é uma
projeção simplificadora, não um facto científico.
O mesmo se verifica noutras áreas. O moralismo
universalista falha perante a diversidade antropológica; o racionalismo
universalista fracassa perante estudos interculturais de tomada de decisão; o
cognitivismo universalista implode quando confrontado com a plasticidade neuronal que Pessoa, Sapolsky e Henrich descrevem. A universalidade que se procurava nas
respostas encontra-se apenas nos mecanismos que produzem variabilidade – não
nas respostas propriamente ditas.
V.3. A metáfora errada: o humano não é um relógio, é uma ecologia
O paradigma clássico dos séculos XVII a XX – profundamente
influenciado por Descartes, Newton e Laplace – tratava o comportamento humano
como algo que poderia ser desconstruído em componentes estáveis e recombinado
numa explicação linear. O humano era um relógio complexo, mas, no essencial,
mecânico. A ciência contemporânea substitui esta metáfora por outra: a de uma
ecologia dinâmica, onde variáveis múltiplas interagem em escalas temporais
diferentes, produzindo fenómenos emergentes.
Robert Sapolsky desmonta esta metáfora mecânica
de forma exemplar. Para explicar um único comportamento humano, seria
necessário analisar:
· eventos que
ocorrem segundos antes (activação neuronal, percepção de ameaça, regulação
autonómica);
· horas antes
(padrões hormonais, ciclos metabólicos);
· dias antes
(níveis de stress, interações sociais recentes);
· anos antes
(aprendizagens, traumas, estatuto socioeconómico, oportunidades culturais);
· décadas antes
(desenvolvimento cerebral, vínculos de infância, ecologia familiar);
· séculos antes
(estruturas sociais, normas culturais, sistemas de crenças);
· milénios antes
(pressões evolutivas, formas de organização colectiva).
O que esta perspectiva revela é que o que chamamos
“natureza humana” não pode ser compreendido como um conjunto estático de
características, mas como uma resultante histórica, biológica e cultural
continuamente negociada. Nenhum comportamento humano é puramente biológico,
puramente cultural ou puramente individual. É sempre híbrido, composto,
dinâmico.
O mesmo vale para a percepção e a emoção. O
cérebro não reage ao mundo como uma câmara ou um sensor passivo. Constrói o
mundo a partir de previsões, inferências, hipóteses, expectativas. Daniel Yon
mostra que estas inferências podem ser tão potentes que produzem alucinações,
completam padrões inexistentes, inventam contornos em imagens degradadas ou
moldam o que parece ser uma percepção directa. A percepção é uma negociação
permanente entre o que é recebido e o que é antecipado. E negociações não
produzem invariantes; produzem soluções diversas.
V.4. Quando a cultura molda a mente: diferenças que são estruturais, não
superficiais
Joseph Henrich demonstra empiricamente que aquilo
que muitas vezes se apresenta como universal são traços culturais específicos –
fenómenos provincianos travestidos de leis gerais. Populações WEIRD
desenvolveram modelos de raciocínio, moralidade, personalidade e cooperação que
não representam a maior parte da humanidade. Em sociedades holísticas, as
pessoas percepcionam relações e contextos que indivíduos de culturas analíticas
tendem a ignorar; em sociedades com estruturas familiares extensas, a
moralidade tende a ser relacional e não abstrata; em comunidades onde a
sobrevivência depende de interdependência forte, a individualidade assume
contornos muito diferentes.
O cérebro molda-se a estas ecologias. Aprender
uma língua tonal altera a forma como o cérebro processa frequência e entoação;
crescer numa cultura de honra modifica a sensibilidade à provocação; viver em
sociedades com normas colectivistas altera redes associadas a autoconceito e
tomada de decisão. Isto não são diferenças superficiais: são diferenças
estruturais.
O que emerge é um quadro claro: não existe uma
mente humana universal, mas uma arquitetura universal para produzir mentes
diversas.
V.5. A rigidez ideológica como excepção, não como regra
Se a variedade é a norma, a rigidez cognitiva
surge como um fenómeno que merece explicação. É aqui que o trabalho de Leor
Zmigrod adquire relevância. Para Zmigrod, o que caracteriza o pensamento
ideológico extremo – seja à esquerda, à direita ou em qualquer outro domínio – é
a sua incapacidade de actualizar crenças à luz de nova evidência e a sua
propensão para fundir identidade pessoal e identidade grupal. O ideólogo
extremo não pensa com o mundo; pensa contra ele. A rigidez não é um traço
essencial; é um bloqueio, uma redução da capacidade adaptativa típica do
cérebro humano.
Na sua investigação, Zmigrod demonstra que
indivíduos ideologicamente extremos têm menor flexibilidade cognitiva, menor
tolerância à ambiguidade e maior propensão para dicotomias simplistas.
Paradoxalmente, estes indivíduos veem-se a si próprios como guardiões de uma
essência humana – moral, nacional, espiritual, política. Mas é precisamente
essa crença numa essência que os torna incapazes de lidar com a pluralidade
real do humano.
Num certo sentido, a ideologia extrema é a
tentativa desesperada de reintroduzir uma “natureza humana única” num mundo que
a ciência já dissolveu. É a nostalgia de uma simplicidade que nunca existiu.
V.6. O argumento final: a evidência não aponta para uma única natureza
humana, mas para múltiplas
O fio unificador destas contribuições é claro:
Não existe uma natureza humana universal no
sentido forte.
O que existe é uma espécie dotada de mecanismos
universais para gerar diversidade.
Esta formulação é mais compatível com a evidência
do que qualquer postulado de invariância psicológica. Garante consistência
conceptual sem obstruir a riqueza empírica. E coloca a ciência contemporânea em
continuidade com uma tradição filosófica que sempre desconfiou de essências
fixas – de Heraclito a Nietzsche.
As ciências do cérebro, do comportamento e da
cultura convergem num ponto essencial: a pluralidade humana não é um ruído a
eliminar, mas a assinatura da própria espécie. Onde os modelos antigos
procuravam uniformidade, os novos modelos encontram ecologias; onde antes se
procurava essência, agora encontra-se história; onde antes se imaginava
estabilidade, descobre-se plasticidade.
Dito de outra forma: a diversidade humana não é o
desvio. É o dado.
VI – CONCLUSÃO: A PLURALIDADE COMO FUNDAMENTO, NÃO COMO EXCEPÇÃO
A história da ciência do comportamento humano
pode ser lida como uma longa tentativa de simplificação. Procurou-se uma
gramática universal das emoções, uma lógica universal da moralidade, uma
estrutura universal de raciocínio, um conjunto universal de disposições
psicológicas que permitisse descrever o humano em termos de invariantes. Estas
tentativas eram compreensíveis. Ofereciam uma promessa de ordem num domínio
povoado por variáveis biológicas, sociais, culturais e históricas em interacção
permanente. Mas a ciência contemporânea, com um rigor que não se compadece com
intuições antigas, veio mostrar que essa promessa era ilusória.
O que atravessa as contribuições de Barrett,
Sapolsky, Pessoa, Russell, Henrich, Yon e Zmigrod é uma conclusão convergente:
não existe uma
natureza humana entendida como um conjunto único e universal de características
psicológicas.
O que existe é uma arquitetura biológica
altamente plástica, historicamente moldável, culturalmente configurável e
cognitivamente maleável, que produz diversidade como função normal, e não como
anomalia.
Este ponto merece ser sublinhado. A pluralidade
não é uma falha da teoria; é o núcleo da realidade. Não é um obstáculo a ser
esquecido para que as explicações ganhem elegância; é o material de que as
explicações devem ser feitas. A biologia humana não determina conteúdos,
determina capacidades. Os cérebros não impõem significados, constroem-nos. As
culturas não gravitam em torno de essências, mas de ecologias de práticas,
instituições, aprendizagens e incentivos. E os indivíduos não se comportam
segundo um guião universal, mas segundo interacções específicas entre
predisposições, contextos e histórias pessoais.
Esta pluralidade, longe de nos conduzir ao
relativismo absoluto, oferece-nos um referencial mais sólido, mais empírico e
mais honesto. Permite-nos distinguir onde reside a universalidade legítima. O
que é universal não são as emoções específicas, mas a capacidade de
construí-las. Não são as crenças particulares, mas a maquinaria que as torna
possíveis. Não são os valores concretos, mas a plasticidade que os molda. Não
são as estruturas morais, mas a propensão para normatividade. Não são as
respostas, mas o sistema que gera diferentes respostas em contextos diferentes.
A pluralidade é, portanto, a verdadeira
universalidade humana.
O que esta perspectiva exige é uma mudança
profunda de categoria. Não se trata apenas de substituir uma teoria por outra.
Trata-se de substituir um tipo de pergunta por outro. A ciência deixou de
perguntar “qual é a verdadeira natureza humana?” para perguntar “quais são os
mecanismos que geram diferentes formas de ser humano?” Esta transição é
epistemologicamente decisiva. E é eticamente indispensável.
Compreender a diversidade como fundamento tem
consequências práticas. Significa abandonar avaliações baseadas em normas
implícitas. Significa rejeitar pressupostos de que existe um modo correto e
natural de sentir, agir, perceber ou decidir. Significa reconhecer que os erros
de interpretação, de julgamento e de atribuição não são desvios raros, mas
manifestações previsíveis de sistemas que operam por inferência e predição.
Significa aceitar que a visão ocidental, WEIRD, analítica e individualista não
representa a linha de base da humanidade, mas uma das suas variações possíveis.
Significa compreender que a rigidez ideológica, longe de ser um modo puro de
pensamento, é uma compressão patológica da nossa capacidade cognitiva de
responder ao mundo com flexibilidade. E significa, acima de tudo, que qualquer
projecto que pretenda refletir sobre o humano – científico, filosófico,
político, social – só será sólido na medida em que incorporar esta pluralidade
como ponto de partida e não como nota de rodapé.
O caminho está traçado. A psicologia do século
XXI, a neurociência contemporânea e as ciências sociais interdisciplinares
apontam para um modelo do humano fundado na variação, na construção, na
aprendizagem e na cultura. Um humano que não é definido por uma essência, mas
por possibilidades. Um humano que não é explicável por um único eixo, mas por
camadas de história, corpo, contexto e experiência. Um humano que não cabe em
categorias fáceis nem em teorias de simplicidade sedutora.
Um humano, enfim, que é muitos.
Depois de percorrermos este caminho, a conclusão
deixa de ser tímida. Não se trata apenas de sugerir que talvez “seja possível”
que existam variações entre pessoas ou que “eventualmente” as nossas teorias
sobre a natureza humana precisem de ajustes. O que os dados disponíveis
permitem afirmar, com segurança razoável, é mais forte, não existe base
científica para continuar a falar de uma natureza humana única.
O que sabemos hoje sobre evolução, cérebro,
emoção, cognição, cultura e desenvolvimento aponta consistentemente para a
pluralidade. Não existe uma forma típica de sentir medo, culpa ou alegria. Não
existe um modo universal de recordar o passado ou de antecipar o futuro. Não
existe um padrão único de decisão racional. Não existe uma expressão facial que
signifique sempre o mesmo em todas as pessoas. Não existe uma forma homogénea
de reagir à perda, ao conflito, à ameaça ou à acusação social. O que existe são
distribuições de possibilidades, configuradas por cadeias causais complexas que
incluem biologia, ambiente, história de vida e contexto imediato.
Isto não significa que tenhamos já uma teoria
definitiva sobre como estas múltiplas naturezas humanas se organizam. Aqui,
sim, a prudência continua a ser indispensável. As propostas de cérebro
preditivo, emoções construídas, redes entrançadas e mentes encarnadas são, em
si mesmas, teorias que podem vir a ser corrigidas, refinadas ou parcialmente
substituídas. Mas o ponto de não retorno está noutro lugar. Mesmo que os
detalhes mudem, é muito improvável que regressemos a um modelo em que um único
perfil psicológico possa ser erigido como essência humana.
Por isso, faz sentido distinguir dois níveis. No
primeiro, negativo, o trabalho está feito, a teoria de uma natureza humana
única foi, na prática, refutada. No segundo, positivo, continuamos a
construir modelos sobre como funcionam, concretamente, as múltiplas naturezas
humanas. Há incerteza sobre o melhor enquadramento teórico, mas há muito pouca
dúvida de que o enquadramento antigo não funciona.
Uma reflexão honesta sobre o ser humano no século
XXI tem de partir deste reconhecimento. Qualquer instituição, disciplina ou
prática que continue a tratar o ser humano como um bloco homogéneo está a
operar com uma ficção. Esta ficção pode ser confortável, pode ser retoricamente
eficaz, pode simplificar decisões, mas já não é compatível com o que sabemos.
Aceitar a pluralidade das naturezas humanas não é um luxo intelectual, é uma
exigência mínima de rigor num tempo em que os próprios instrumentos científicos
nos obrigam a olhar para a diferença como regra e não como desvio.
Se existe uma verdade científica robusta sobre a
natureza humana, é esta:
não existe uma natureza humana singular. Existem naturezas humanas. E é essa
multiplicidade que nos define.
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Miguel Pereira - Reasonable Doubt
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