Liberdade de expressão e Justiça
Os
últimos tempos têm sido férteis (um pouco mais do que é normal) em comentários,
declarações e entrevistas sobre os problemas da justiça penal, quase sempre,
culminando com a “sentença”, que o maior entrave para o seu pleno e saudável
funcionamento, são os malandros dos Advogados e os seus expedientes dilatórios,
usando e abusando das garantias de defesa que, dizem-no agora, pelos vistos são
excessivas, embora não o concretizem em que medida o serão, nem quais as
alterações/restrições que propõem.
Desde
o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP), cujos associados se
encontram vinculados a um princípio de legalidade na vertente objectiva (pelo
menos é o que diz a lei), que os leva a ter que pedir a absolvição ou mesmo a
recorrer em benefício do arguido, nas situações em que as normas e princípios
penais e processuais penais a isso o obriguem, passando pela Associação
Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP), em que os associados têm que ser
imparciais, apenas tendo que observar as leis, até, mais recentemente ao
Presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) Senhor Conselheiro Henrique
Araújo, de quem, por sinal, gostei do tom ponderado e do envolvimento e
preocupação com os temas da justiça, mas com o qual não poderei deixar de
discordar frontalmente no que diz respeito ao invocado excesso de garantias de
defesa, não fugindo, como já seria de esperar, aos comentadores e “opinadores”
de serviço da imprensa (a quem supostamente compete noticiar de forma
objectiva) amiga ou de claque, que tem direito aos exclusivos, à inside
information, ao “saber antes dos outros”, inclusive, saber dos indícios
antes dos Advogados de defesa (esses malandros), podendo acompanhar, fotografar
e filmar as “fantásticas” detenções dos ditos poderosos, todos, mas todos sem
excepção, apontam falhas ao sistema, sempre em “prejuízo” dos arguidos, o que
não deixa de ser curioso, mas que diz muito do clima que se encontra instalado.
Acredito
que estamos a trilhar um caminho perigoso, mas aprofundemos.
Uma
das questões mais invocadas, tem a ver com a possibilidade de inversão do ónus
da prova na criação do tipo de crime de enriquecimento ilícito, que só ainda
não encontrou “guarida”, porquanto o Tribunal Constitucional (TC) não o tem,
sucessivamente, permitido, ao contrário do que acontece noutros ordenamentos
jurídicos e da própria Convenção da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre corrupção,
conforme algumas vozes o referem.
Disse
o Senhor Conselheiro Henrique Araújo estranhar que o legislador, sempre tão
criativo no que diz respeito às questões tributárias, ainda não ter conseguido
legislar acertadamente, quanto a este tipo de criminalização.
Outro
ponto também muito interessante, é o da condenação com base em prova indiciária
ou indirecta, pois, que, como diz o povo, “quem cabritos vende e cabras não
tem, de algum lado vem”, ou, “branco é, galinha o pôs”.
Referem
alguns que, em termos gerais, ou seja, nos processos sem arguidos VIP, tudo
está bem, porquanto os tempos médios de tramitação estão em linha com a média
da União Europeia. O problema reside então, para esses, nos problemas que
envolvem arguidos conhecidos publicamente, e essencialmente na criminalidade
económica, quase sempre nos chamados Mega processos.
Importa
começar por referir que, a compilação de pedaços de vida de, por vezes,
décadas, com inúmeros arguidos, não é da responsabilidade dos Advogados. Dizer
também que, e ao contrário do que muitas vezes é propalado, é possível separar arguidos
e factos sem qualquer prejuízo para a realização da justiça, como é disso bom
exemplo, pelo menos em termos de celeridade, dos processos saídos da Operação
Marquês, após decisão instrutória.
É
sabido que as acusações nesse tipo de processos, aparecem ao fim de vários anos
da abertura do inquérito, muitas vezes com investigação administrativa prévia, manifestamente
ilegal (há coisas que não mudam ainda que se mudem os regimes democráticos), chegando-se,
inclusive, a decretar a prisão preventiva dos arguidos, e posteriormente a ter
que libertá-los por ultrapassagem dos prazos legais desta medida de coação
mesmo antes do encerramento da fase de inquérito e da notificação da respectiva
acusação, quando é o caso.
Acredito
que, não será necessário dizê-lo, mas a intervenção dos Advogados e dos
próprios arguidos nestas circunstâncias é mínima, para não dizer inexistente,
pelo que, certamente todo este tempo não lhes poderá ser imputável, mas conta
para as estatísticas (pelo menos desde a abertura do inquérito).
Nas
fases de instrução e julgamento, até por uma questão de “igualdade de armas”,
por vezes existe um aumento dos prazos para a práctica de actos por parte dos
Advogados, em face da natureza dos processos, mas que não justificará, per
si, o prazo excessivo de tramitação processual.
Peço
agora que me acompanhem na problematização de alguns destes tópicos, de modo a
que se perceba a perversidade da sua aplicação.
O
maior obstáculo à tipificação do crime de enriquecimento ilícito ou
injustificado, tem sido a aplicação da inversão do ónus da prova em processo
penal e a sua compatibilização com o princípio da presunção da inocência, ou
seja, "inocente até que se prove a culpa", frase proferida pelo Advogado
Britânico Sir William Garrow (1760–1840) durante um julgamento no Tribunal
Criminal Central da Inglaterra e País de Gales, mais conhecido por Old Bailey,
em 1791.
Agora
imaginem que a presunção da inocência não se aplicava no nosso processo penal,
ou mesmo que se aplicava ao ordenamento jurídico processual penal português no
âmbito do crime de violação do segredo de justiça, a presunção de culpa que
existe no sistema dos Estados Unidos da América (EUA), em que de acordo com o
item 7 da alínea e) da Regra 6 das Federal Rules of Criminal Procedure
(o equivalente ao nosso Código de Processo Penal), em que o Procurador
responsável pelo processo é condenado, caso não demonstre que não foi ele o
responsável pela fuga de informação.
Ou
seja, quererá o SMMP, a ASJP, e mesmo a imprensa amiga que, por exemplo, o
Senhor Procurador Rosário Teixeira possa ser condenado por violação de segredo
de justiça, quando existam fugas de informação nos inquéritos de que é titular
e o próprio não consiga demonstrar que não foi o responsável por tal
divulgação?! Não me parece que faça qualquer sentido, sendo, aliás, muito
perigoso, desde logo porque a prova negativa tende a ser diabólica ou mesmo
impossível de o fazer.
Mas
mais: se também aderirmos à tese, repetida ad nauseam, da bondade e necessidade
da aplicação da prova indiciária ou indirecta, vislumbremos que, por exemplo,
nestes dois últimos processos dos ditos poderosos, Joe Berardo e Luís Filipe
Vieira, existiu divulgação de informação em segredo de justiça, mas que um dos
processos tinha como Magistrada titular a Senhora Procuradora Inês Bonina e o
outro estava atribuído ao Senhor Procurador Rosário Teixeira, mas que ambos
tiveram como Juiz de Instrução o Senhor Juiz Carlos Alexandre.
Ora,
aplicando a tal prova indirecta nos termos em que muitos insistem que deve ser
aplicada, temos como factos base a fuga de informação para a imprensa nos dois
processos e a coincidência de terem ambos o mesmo Juiz de Instrução, logo, “branco
é, galinha o pôs”, o Senhor Juiz Carlos Alexandre teria que ser condenado pelo
crime de violação de segredo de justiça. Têm a certeza de que é isto que
pretendem?! Eu discordo, continuo a pensar que é preciso bastante mais para
condenar alguém em processo penal, desde logo provas sólidas o suficiente para prevalecerem
face ao In dubio pro reo.
Enquanto
aguardo que o Senhor Conselheiro Henrique Araújo concretize quais são as
garantias de defesa que considera excessivas, deixem que lhes diga, algumas das
propostas que gostava de ter ouvido por parte do próprio:
Que no
seu mandato não existirão mais Senhores Juízes a exercerem cargos governativos,
executivos ou directivos (desde logo porque preside ao órgão que as autoriza –
Conselho Superior da Magistratura - CSM).
Que
iria propor uma alteração à lei (já que os incidentes de recusa de juiz são
quase letra morta) para que um Juiz de instrução que tenha tido intervenção em
sede de inquérito não possa ser o Juiz da fase de instrução.
Que a
“subida” a Juiz Conselheiro passe a ter critérios mais objectivos, tal como
definidos para aceder a Juiz Desembargador, e que não esteja tão dependente do
arbítrio do Conselho Superior da Magistratura.
Que a ultrapassagem
dos prazos por parte das Magistraturas passe a ter consequências processuais,
desde logo porque, os únicos que estão sempre sujeitos a prazos são os
Advogados e os seus representados.
É um
facto que sou Advogado e que, ainda que por vezes do lado do Assistente, acabo
por ter uma visão mais de Advogado de defesa, mas custa-me que, continuando a
ter acusações frágeis como se tem demonstrado (mas já sentenciadas na praça
pública), os Advogados possam estar a ser penalizados, por apenas estarem a
fazer bem o seu trabalho, colocando em crise as fragilidades dos processos que,
caso não existissem, não poderiam de todo ser invocadas.
É que,
caso fossem só expedientes dilatórios como alguns referem, os resultado seriam
bem diferentes do que têm sido, e o número de condenações com trânsito em
julgado seria bastante superior (e que os processos encerrados por prescrição
após acusação não são tantos quanto isso), tal como aliás, o Senhor Conselheiro
Henrique Araújo acaba por assumir.»
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