Liberdade de expressão e Justiça


Publico infra um artigo de opinião que foi enviado para publicação no dia 27 de Julho de 2021, num órgão de comunicação social onde nunca tinha publicado, obtive como resposta que o texto seria reencaminhado para a secção apropriada (pese embora a minha missiva tivesse sido remetida dando conhecimento a um Director adjunto do aludido órgão de comunicação social), na medida em que a pessoa em causa não era responsável pela área da Justiça.  O texto nunca foi publicado...

«A propósito de garantias de defesa em sede de Processo Penal

 

Os últimos tempos têm sido férteis (um pouco mais do que é normal) em comentários, declarações e entrevistas sobre os problemas da justiça penal, quase sempre, culminando com a “sentença”, que o maior entrave para o seu pleno e saudável funcionamento, são os malandros dos Advogados e os seus expedientes dilatórios, usando e abusando das garantias de defesa que, dizem-no agora, pelos vistos são excessivas, embora não o concretizem em que medida o serão, nem quais as alterações/restrições que propõem.

 

Desde o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP), cujos associados se encontram vinculados a um princípio de legalidade na vertente objectiva (pelo menos é o que diz a lei), que os leva a ter que pedir a absolvição ou mesmo a recorrer em benefício do arguido, nas situações em que as normas e princípios penais e processuais penais a isso o obriguem, passando pela Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP), em que os associados têm que ser imparciais, apenas tendo que observar as leis, até, mais recentemente ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) Senhor Conselheiro Henrique Araújo, de quem, por sinal, gostei do tom ponderado e do envolvimento e preocupação com os temas da justiça, mas com o qual não poderei deixar de discordar frontalmente no que diz respeito ao invocado excesso de garantias de defesa, não fugindo, como já seria de esperar, aos comentadores e “opinadores” de serviço da imprensa (a quem supostamente compete noticiar de forma objectiva) amiga ou de claque, que tem direito aos exclusivos, à inside information, ao “saber antes dos outros”, inclusive, saber dos indícios antes dos Advogados de defesa (esses malandros), podendo acompanhar, fotografar e filmar as “fantásticas” detenções dos ditos poderosos, todos, mas todos sem excepção, apontam falhas ao sistema, sempre em “prejuízo” dos arguidos, o que não deixa de ser curioso, mas que diz muito do clima que se encontra instalado.

 

Acredito que estamos a trilhar um caminho perigoso, mas aprofundemos.

 

Uma das questões mais invocadas, tem a ver com a possibilidade de inversão do ónus da prova na criação do tipo de crime de enriquecimento ilícito, que só ainda não encontrou “guarida”, porquanto o Tribunal Constitucional (TC) não o tem, sucessivamente, permitido, ao contrário do que acontece noutros ordenamentos jurídicos e da própria Convenção da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre corrupção, conforme algumas vozes o referem.

 

Disse o Senhor Conselheiro Henrique Araújo estranhar que o legislador, sempre tão criativo no que diz respeito às questões tributárias, ainda não ter conseguido legislar acertadamente, quanto a este tipo de criminalização.

 

Outro ponto também muito interessante, é o da condenação com base em prova indiciária ou indirecta, pois, que, como diz o povo, “quem cabritos vende e cabras não tem, de algum lado vem”, ou, “branco é, galinha o pôs”.

 

Referem alguns que, em termos gerais, ou seja, nos processos sem arguidos VIP, tudo está bem, porquanto os tempos médios de tramitação estão em linha com a média da União Europeia. O problema reside então, para esses, nos problemas que envolvem arguidos conhecidos publicamente, e essencialmente na criminalidade económica, quase sempre nos chamados Mega processos.

 

Importa começar por referir que, a compilação de pedaços de vida de, por vezes, décadas, com inúmeros arguidos, não é da responsabilidade dos Advogados. Dizer também que, e ao contrário do que muitas vezes é propalado, é possível separar arguidos e factos sem qualquer prejuízo para a realização da justiça, como é disso bom exemplo, pelo menos em termos de celeridade, dos processos saídos da Operação Marquês, após decisão instrutória.

 

É sabido que as acusações nesse tipo de processos, aparecem ao fim de vários anos da abertura do inquérito, muitas vezes com investigação administrativa prévia, manifestamente ilegal (há coisas que não mudam ainda que se mudem os regimes democráticos), chegando-se, inclusive, a decretar a prisão preventiva dos arguidos, e posteriormente a ter que libertá-los por ultrapassagem dos prazos legais desta medida de coação mesmo antes do encerramento da fase de inquérito e da notificação da respectiva acusação, quando é o caso.

 

Acredito que, não será necessário dizê-lo, mas a intervenção dos Advogados e dos próprios arguidos nestas circunstâncias é mínima, para não dizer inexistente, pelo que, certamente todo este tempo não lhes poderá ser imputável, mas conta para as estatísticas (pelo menos desde a abertura do inquérito).

 

Nas fases de instrução e julgamento, até por uma questão de “igualdade de armas”, por vezes existe um aumento dos prazos para a práctica de actos por parte dos Advogados, em face da natureza dos processos, mas que não justificará, per si, o prazo excessivo de tramitação processual.

 

Peço agora que me acompanhem na problematização de alguns destes tópicos, de modo a que se perceba a perversidade da sua aplicação.

 

O maior obstáculo à tipificação do crime de enriquecimento ilícito ou injustificado, tem sido a aplicação da inversão do ónus da prova em processo penal e a sua compatibilização com o princípio da presunção da inocência, ou seja, "inocente até que se prove a culpa", frase proferida pelo Advogado Britânico Sir William Garrow (1760–1840) durante um julgamento no Tribunal Criminal Central da Inglaterra e País de Gales, mais conhecido por Old Bailey, em 1791.

 

Agora imaginem que a presunção da inocência não se aplicava no nosso processo penal, ou mesmo que se aplicava ao ordenamento jurídico processual penal português no âmbito do crime de violação do segredo de justiça, a presunção de culpa que existe no sistema dos Estados Unidos da América (EUA), em que de acordo com o item 7 da alínea e) da Regra 6 das Federal Rules of Criminal Procedure (o equivalente ao nosso Código de Processo Penal), em que o Procurador responsável pelo processo é condenado, caso não demonstre que não foi ele o responsável pela fuga de informação.

 

Ou seja, quererá o SMMP, a ASJP, e mesmo a imprensa amiga que, por exemplo, o Senhor Procurador Rosário Teixeira possa ser condenado por violação de segredo de justiça, quando existam fugas de informação nos inquéritos de que é titular e o próprio não consiga demonstrar que não foi o responsável por tal divulgação?! Não me parece que faça qualquer sentido, sendo, aliás, muito perigoso, desde logo porque a prova negativa tende a ser diabólica ou mesmo impossível de o fazer.

 

Mas mais: se também aderirmos à tese, repetida ad nauseam, da bondade e necessidade da aplicação da prova indiciária ou indirecta, vislumbremos que, por exemplo, nestes dois últimos processos dos ditos poderosos, Joe Berardo e Luís Filipe Vieira, existiu divulgação de informação em segredo de justiça, mas que um dos processos tinha como Magistrada titular a Senhora Procuradora Inês Bonina e o outro estava atribuído ao Senhor Procurador Rosário Teixeira, mas que ambos tiveram como Juiz de Instrução o Senhor Juiz Carlos Alexandre.

 

Ora, aplicando a tal prova indirecta nos termos em que muitos insistem que deve ser aplicada, temos como factos base a fuga de informação para a imprensa nos dois processos e a coincidência de terem ambos o mesmo Juiz de Instrução, logo, “branco é, galinha o pôs”, o Senhor Juiz Carlos Alexandre teria que ser condenado pelo crime de violação de segredo de justiça. Têm a certeza de que é isto que pretendem?! Eu discordo, continuo a pensar que é preciso bastante mais para condenar alguém em processo penal, desde logo provas sólidas o suficiente para prevalecerem face ao In dubio pro reo.

 

Enquanto aguardo que o Senhor Conselheiro Henrique Araújo concretize quais são as garantias de defesa que considera excessivas, deixem que lhes diga, algumas das propostas que gostava de ter ouvido por parte do próprio:

Que no seu mandato não existirão mais Senhores Juízes a exercerem cargos governativos, executivos ou directivos (desde logo porque preside ao órgão que as autoriza – Conselho Superior da Magistratura - CSM).

Que iria propor uma alteração à lei (já que os incidentes de recusa de juiz são quase letra morta) para que um Juiz de instrução que tenha tido intervenção em sede de inquérito não possa ser o Juiz da fase de instrução.

Que a “subida” a Juiz Conselheiro passe a ter critérios mais objectivos, tal como definidos para aceder a Juiz Desembargador, e que não esteja tão dependente do arbítrio do Conselho Superior da Magistratura.

Que a ultrapassagem dos prazos por parte das Magistraturas passe a ter consequências processuais, desde logo porque, os únicos que estão sempre sujeitos a prazos são os Advogados e os seus representados.

 

É um facto que sou Advogado e que, ainda que por vezes do lado do Assistente, acabo por ter uma visão mais de Advogado de defesa, mas custa-me que, continuando a ter acusações frágeis como se tem demonstrado (mas já sentenciadas na praça pública), os Advogados possam estar a ser penalizados, por apenas estarem a fazer bem o seu trabalho, colocando em crise as fragilidades dos processos que, caso não existissem, não poderiam de todo ser invocadas.

 

É que, caso fossem só expedientes dilatórios como alguns referem, os resultado seriam bem diferentes do que têm sido, e o número de condenações com trânsito em julgado seria bastante superior (e que os processos encerrados por prescrição após acusação não são tantos quanto isso), tal como aliás, o Senhor Conselheiro Henrique Araújo acaba por assumir.»



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