Sobre o Aeroporto da Região de Lisboa
O texto que se segue foi publicado no Observador no dia 9 de Junho de 2020 https://observador.pt/opiniao/da-portela-ao-montijo-uma-viagem-atribulada/:
«Da Portela ao Montijo, uma viagem atribulada
O aeroporto
da Portela nasceu na Quinta da Portela, em virtude de uma necessidade de
aproveitamento dos voos transatlânticos que se faziam nos anos 30/40 em
hidroavião em articulação com o aeroporto de Cabo Ruivo, onde estes últimos chegavam,
fazendo-se o transfer por via rodoviária entre um e outro, pela, agora, Avenida
de Berlim, uma vez que os voos dentro do Continente Europeu (já nessa altura
Lisboa funcionava como um hub Europa/América) e em distâncias mais curtas já se
faziam por recurso aos aviões de descolagem e aterragem em pista.
Não
obstante, logo no final da década de 60 existiu a tomada de consciência que era
preciso mudar a localização do Aeroporto de Lisboa e deu-se início ao estudo de
outras opções.
Em 2012,
em pleno período da troika e por causa desta, o Estado Português decidiu privatizar
a Aeroportos e Navegação Aérea – Aeroportos de Portugal (ANA) que tem a
concessão de todos os aeroportos nacionais por um período de 50 anos.
Assim, em
30 de Agosto de 2012, o Conselho de Ministros aprovou a privatização da ANA por
negociação particular, não sem antes, mais concretamente em 14 de Dezembro
desse mesmo ano, celebrar com a ANA um contrato de concessão de serviço público
aeroportuário nos aeroportos situados em Portugal continental e na Região Autónoma
dos Açores.
Diga-se
em abono da verdade que a ANA era das mais rentáveis empresas públicas portuguesas,
contribuindo para os cofres públicos com dezenas de milhões de euros em
dividendos anuais.
Aquando
da aprovação da venda da ANA, o sector aeroportuário encontrava-se regulado
pelo Decreto-Lei n.º 217/2009, de 4 de Setembro, sendo que um mês depois da
privatização, este regime foi substituído pelo Decreto-Lei n.º 254/2012, de 28
de Novembro, sobre o qual a comissão constituída para acompanhar e avaliar o
processo de privatização disse: “A meio do processo, substituiu-se um recente
quadro regulatório legal bastante preciso e desenvolvido por uma cláusula
regulatória praticamente em branco”. Na verdade a lei deixou de definir a
fixação de taxas, passando estas a constar do contrato de concessão.
Em
resultado, os aumentos dos tarifários aeroportuárias em Lisboa têm sido tantos (uma
média de 2 por ano e com fortes efeitos nos custos operacionais da TAP) que a
ANA já entregou em dividendos ao acionista, o grupo francês Vinci, mais de
metade dos lucros obtidos desde a sua privatização, que ultrapassam os 1.170
milhões de euros.
Em 21 de
Fevereiro de 2013 foi assinado entre a ANA, a Vinci e a Parpública o acordo de
venda das acções, que tem como curiosidade ser redigido na língua inglesa e tal
como o contrato de concessão também prevê a resolução de diferendos através de
tribunal arbitral.
É no
mínimo estranho, que o Estado insista em renunciar aos seus próprios tribunais
optando invariavelmente por tribunais arbitrais – onde os Árbitros ganham mais
num litígio do que os Magistrados Judiciais auferem num ano –, sob a
justificação da celeridade, capacidade técnica e confidencialidade, omitindo
que nessa sede mais facilmente se poderão fazer acordos e não revelar
publicamente os contratos celebrados (nem os acordos), o que em termos de
transparência e da boa gestão dos dinheiros públicos é de duvidosa legalidade.
No dia 15
de Fevereiro de 2017, já sob a alçada do Governo PS liderado pelo Dr. António
Costa é assinado entre o Estado Português e a Vinci um Memorando de
Entendimento (que não se encontra publicado e poucos o conhecem) sobre as
condições para o desenvolvimento do aeroporto no Montijo como solução de aumento
de capacidade do aeroporto Humberto Delgado.
Em 23 de
Março de 2018 foi publicado o Despacho n.º 2989/2018, de 15 de Março, da
Unidade Técnica de Acompanhamento de
Projetos, que determina a constituição de uma comissão para a renegociação do
Contrato de Concessão de Serviço Público Aeroportuário nos Aeroportos situados
em Portugal continental e na Região Autónoma dos Açores, celebrado entre o
Estado Português e a ANA.
No dia 8
de Janeiro de 2019 foi assinado um acordo entre a Vinci/ANA e o Estado
Português tendo em vista a construção e financiamento do aeroporto no Montijo. A
decisão estava tomada apenas faltava cumprir “umas meras formalidades”, tais
sejam o Estudo de Impacte Ambiental (EIA), a Avaliação de Impacte Ambiental
(AIA) e a emissão da Declaração de Impacte Ambiental (DIA).
Ora,
existindo decisão governamental prévia à AIA, era manifesto que o resultado
desta teria que ser favorável, não obstante o coro de críticas que já se fazia
sentir pelo atentado ambiental que se estava prestes a cometer.
O
processo decorreu debaixo de precipitações, turbulências e equívocos, tal era a
pressão para que a carta chegasse a Garcia.
O EIA foi
realizado por uma entidade que, após a sua submissão junto da Agência
Portuguesa do Ambiente (APA), autoridade de AIA para o efeito, foi prestar os
seus serviços a essa mesma entidade em resultado de um procedimento
adjudicatório público. Entretanto o Presidente dessa mesma entidade, Dr. Nuno
Lacasta, viu a sua comissão de serviço renovada por um período de mais 5 anos,
Presidente este que de forma muito solícita enviou e-mail à Autoridade Nacional
de Emergência e de Protecção Civil (ANEPC), aquando da recepção do Parecer negativo
desta entidade em virtude da localização do projecto ser em zona de elevada susceptibilidade
a riscos naturais, nomeadamente sísmico e de tsunami, no sentido de desconsiderar
essa análise porquanto o Laboratório Nacional de Energia e Geologia (LNEG)
tinham acautelado essa circunstância. O LNEG é presidido pela Prof. Teresa
Ponce de Leão, cujo apelido curiosamente é o mesmo do anterior Presidente da
ANA, Dr. Jorge Ponce de Leão, percursor e acérrimo defensor do projecto do aeroporto
no Montijo e que posteriormente transitou para Presidente do Conselho de
Administração da Navegação Aérea de Portugal (NAVE).
No melhor
pano cai a nódoa e o outrora solícito Presidente da APA esqueceu-se de elaborar
e aprovar o regulamento de funcionamento da Comissão de Avaliação (CA) do EIA,
publicitando-o ainda no seu sítio na Internet e no balcão único eletrónico. Um
dos membros dessa CA, mais concretamente o Instituto da Conservação da Natureza
e das Florestas (ICNF), mudou a sua posição relativamente aos mecanismo de
compensação do projecto após uma operação de robustecimento jurídico externo.
Entretanto
o Senhor Ministro das Infraestruturas e Habitação sugeriu a mudança do regime
jurídico que obriga ao parecer positivo de todas as autarquias afectadas pelos
impactos do projecto para o seu licenciamento junto da Autoridade Nacional da
Aviação Civil (ANAC), tendo em vista ultrapassar a oposição dos Municípios do
Seixal e da Moita, como quem muda as regras a meio de um jogo. A ANAC
entretanto foi objecto duma auditoria por parte do Tribunal de Contas (TdC) que
apurou deficiências várias que afetam a sua independência, não garantindo a
regulação robusta, isenta e independente considerada urgente pelo legislador,
desde logo por os membros do seu Conselho de Administração estarem em conflito
de interesses decorrentes de funções prévias exercidas no principal regulado da
ANAC (o grupo ANA). Pelo meio o TdC ainda teve a oportunidade de apurar que a
ANA terá recebido 157 milhões de euros, entre 2015 e 2017, que foram omitidos
das contas públicas.
O Senhor
Primeiro-Ministro tentou, numa manobra de charme, que deveria ter sido feita em
momento anterior à decisão do projecto (mais vale tarde do que nunca, dirão),
reunir com os Presidentes das Autarquias “desavindas”, ouvindo ainda o
Presidente da única autarquia que não se pronunciou em sede de discussão
pública, o Dr. Fernando Medina, que tem a peculiaridade de porventura ser o líder
do Município cujos munícipes têm o maior interesse em que o projecto do Montijo
não se concretize, porquanto esta opção tem como objectivo principal prolongar
no tempo o Aeroporto Humberto Delgado, não cumprindo assim a deslocalização
deste equipamento cuja necessidade foi assumida, por razões ambientais e de
segurança, pelo menos em 1969, mas que, facto curioso, o seu edil é favorável à
opção Portela + Montijo, opção que confessadamente não é a melhor para o Dr.
António Costa (já o diz desde 2008) não fora os “contratos assinados”, pelo seu
Governo claro está.
No dia 21
de Janeiro passado, a APA comunicou ter emitido a DIA favorável condicionada,
de que resulta à saciedade a omissão de que das 1180 participações apresentadas
no âmbito da consulta pública, apenas 10
lhe são favoráveis, mas, como a realidade é dificilmente escamoteável, a AIA
não deixa de reconhecer que os impactes ambientais negativos são
significativos, permanentes e irreversíveis (mas aprova?!).
O Senhor
Ministro do Ambiente tem sido um apoiante muito forte deste projecto,
desdobrando-se em comentários aqui e ali, até em programas de entretenimento,
sobre as virtualidades desta opção, ignorando ou omitindo por exemplo, que a análise
de risco de colisões com aves e a possibilidade de ocorrência de acidentes
graves em zonas de risco industrial não foi feita, tal como também não o foi uma
efectiva avaliação de ruído, assim como, não lhe causa transtorno o risco de
subida das águas, quando não há muito tempo recomendou a mudança de localização
de toda uma povoação que já hoje se encontra sob a influência do problema da
subida das águas do Rio Tejo, talvez desconhecendo que uma avaliação ambiental
reversa nunca permitiria a construção do aeroporto no Montijo.
A verdade
é que a emergência das alterações climáticas e o aumento do nível das águas do
mar, poderão condicionar a prazo não muito distante, não só a própria
exploração do aeroporto no Montijo, como potenciar os efeitos negativos no
ambiente e na qualidade de vida das populações
e na avifauna circunvizinhas que a sua construção representa.
Sabemos
que a política por vezes tem razões que a própria razão desconhece, mas sou só
eu que acho tudo isto muito estranho, ou por acaso existe algum Senhor
Procurador que também fica com algumas dúvidas a carecer de investigação e
esclarecimentos?!
Um pequeno
facto mas não de somenos importância, estas linhas foram escritas no dia
Mundial do Ambiente, que é matéria que certamente os nossos governantes ainda
desconhecem.»
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