Diogo Freitas do Amaral – “O Excesso de Poderes do Ministério Público em Portugal”
“1. Exposta, noutro local, a
nossa visão genérica sobre «a crise da justiça em Portugal», abordamos hoje
aqui um aspecto específico dessa crise – precisamente, aquilo que julgamos ser
«o excesso de poderes do Ministério Público».
2. Começaremos por enunciar os
pontos essenciais da concepção tradicional do Ministério Público.
Em primeiro lugar, o Ministério
Público não era olhado como um elemento do poder judicial, mas antes
como um departamento do poder executivo, hierarquicamente subordinado ao
governo.
Em segundo lugar, e como
consequência disso, os membros do Ministério Público não eram considerados como
magistrados, equiparados em tudo (ou quase tudo) aos juízes ou
magistrados judiciais, mas sim como agentes administrativos e, portanto,
equiparados no essencial aos funcionários públicos.
Em terceiro lugar, o Ministério
Público não ocupava um lugar destacado no organograma do sistema judicial: as
Constituições monárquicas não se lhe referiam, a Constituição republicana de
1911 também não, e a Constituição de 1933 apenas declarava, muito vagamente,
que «o Estado será representado junto dos tribunais pelo Ministério Público»
(art. 118.º).
Em quarto lugar, não havia uma
carreira privativa dos agentes do Ministério Público: um futuro juiz começava a
sua carreira como delegado do Ministério Público e depois, se provasse bem,
passava para a carreira judicial; dentro desta, quando necessário, escolhiam-se
alguns elementos para a categoria mais elevada do Ministério Público.
O dirigente máximo do Ministério
Público – procurador-geral da Coroa, na Monarquia, ou procurador-geral da
República, no regime republicano não possuía estatuto especial ou significativa
notoriedade pública: era apenas um, entre vários, dos altos funcionários do
Ministério da Justiça.
Enfim, o Ministério Público não
gozava de autonomia face ao governo, os seus agentes formavam uma hierarquia
administrativa, dirigida pelo procurador-geral, e este, por sua vez, dependia
funcionalmente, em tudo, do respectivo superior hierárquico o ministro da
Justiça.
A definição e a execução da
política criminal, bem como das outras políticas públicas levadas a efeito
através do Ministério Público, competiam assim ao governo, que por elas era
responsável perante o Parlamento (se o sistema de governo fosse parlamentar) ou
perante o presidente da República (se o sistema fosse de tipo presidencial).
3. Tudo isto (ou quase tudo)
mudou com a Constituição de 1976 e com as consequentes leis orgânicas do
Ministério Público. Assim, o Ministério Público passou a ser regulado em
capítulo próprio da Constituição (cap. IV do título VI da parte III da lei
fundamental); o texto constitucional equiparou o Ministério Público à
magistratura judicial, atribuindo-lhe «estatuto próprio» (art.224.º, n.º 2) e
chamando aos seus agentes «magistrados» (art. 225.º, n.º 1); a nomeação,
promoção e colocação destes, bem como a acção disciplinar sobre eles, deixou de
pertencer ao governo e passou a ser da competência da Procuradoria-Geral da
República, num claro regime de auto-governo profissional (art. 225.º, n.º 2).
Na linha desta orientação, mas
indo ainda mais longe do que a Constituição, a primeira lei orgânica do
Ministério Público posterior ao 25 de Abril (aprovada pela lei n.º 38/78, de 5
de Julho) conferiu ao Ministério Público um regime de autonomia em
relação aos órgãos do poder central, regional e local (art. 2.º, n.º 1);
desvinculou-o da obediência hierárquica ao governo (arts. 2.º e 75.º, n.º 2);
construiu uma carreira de magistrados do Ministério Público «paralela à
magistratura judicial e dela independente» (arts. 70.º, n.º 1 e segs.); e –
para cúmulo – foi ao ponto de permitir ao Ministério Público (art.º 3) exercer
funções próprias do poder judicial («velar para que a função jurisdicional se
exerça em conformidade com a Constituição e as leis», «promover a execução das
decisões dos tribunais», «fiscalizar a constitucionalidade das leis e
regulamentos»), bem como chamar a si o exercício de funções policiais («dirigir
a investigação criminal, ainda quando realizada por outras entidades») e passar
a controlar, em substituição do ministro da justiça, a Polícia Judiciária
(«fiscalizar a Polícia Judiciária»).
4. Deve notar-se, a propósito,
que esta concessão de autonomia ao Ministério Público tem de ser inserida no
quadro mais vasto da «explosão de autonomias» que a Constituição de 1976
consagrou, como reacção contra os excessos de centralização e concentração de
poderes praticados pela Ditadura.
Passaram então a gozar de
autonomia, face ao poder executivo central, não apenas as regiões Autónomas e
as autarquias locais, mas também as Universidades, o Ministério Público e as
próprias Forças Armadas.
No caso das regiões Autónomas e
das autarquias locais, as autonomias justificavam-se objectivamente e, por
isso, consolidaram-se.
Já no caso das universidades,
conquanto justificável objectivamente, a autonomia concedida foi longe de mais
e tem produzido, a par de alguns bons resultados, muitas consequências
deploráveis. Desenha-se, por isso, hoje em dia, um princípio de consenso no
sentido de introduzir alguns limites à ampla autonomia reconhecida e de
restabelecer, pelo menos em certos casos e para certos efeitos, os necessários
poderes de tutela governamental.
Noutros caso, enfim, a autonomia
não se justificava de todo em todo, tinha sido um a libertação eufórica do
período revolucionário, mas carecia de ser anulada através de uma reintegração
– ainda que cautelosa – no regime normal da administração directa do Estado,
sob a dependência hierárquica do governo: era o caso das Forças Armadas, cuja
indispensável subordinação ao poder político civil (através do ministro da
Defesa Nacional) foi realizada em 1982 pela lei de Defesa Nacional e das Forças
Armadas, com pleno êxito.
5. Resta o Ministério Público.
Não nos vamos pronunciar aqui
sobre os méritos e deméritos da sua carreira paralela e independente, face à
carreira dos magistrados judiciais.
Sustentamos, sim, que a autonomia
conquistada face ao governo e as funções excessivas obtidas face aos tribunais
e à Polícia Judiciária foram um erro político sério, que precisa ser emendado
com a maior brevidade possível.
Em nossa opinião, o Ministério
Público não deve ser autónomo face ao governo, nem deve exercer funções de
natureza judicial ou policial.
Porquê?
Quanto à posição do Ministério
Público face ao governo, deve ter-se presente que os seus agentes não são
juízes: não julgam. Apenas promovem, requerem, recorrem, recomendam, etc. O
Ministério Público, na sua actividade específica, não manifesta passividade
nem imparcialidade, como é próprio da função jurisdicional, mas antes
actua com iniciativa e em posição de parte, como é timbre da
função administrativa. Ora o «órgão superior da administração pública» é o
governo (CRP, art. 182.º), que exerce poder de direcção (hierárquica sobre a
administração directa do Estado (CRP, art. 199.º, al. d)).
Por outro lado, «o governo é o
órgão de condução da política geral do país» (CRP, art.º 182.º), cabendo ao
Conselho de Ministros «definiras linhas gerais da política governamental, bem
como as da sua execução» (CRP, art. 200.º, n.º 1, al. a)), e competindo a cada
ministro «executar a política definida para o seu ministério» (CRP, art. 201.º,
n.º 2, al. a)). A política criminal – tal como as outras políticas públicas em
cuja execução o Ministério Público participa – é da competência do governo, e
não pode ser delegada no Ministério Público.
Concluímos, assim, que a
autonomia conferida por lei ao Ministério Público em 1978 foi duplamente
inconstitucional: por um lado, porque a actividade material do Ministério
Público é de natureza administrativa (e na jurisdicional), pelo que aquele deve
depender do governo; e, por outro, porque essa actividade consiste na execução
de políticas públicas, e quem define e
dirige a execução das diversas políticas públicas do Estado é o governo.
Mas tal autonomia, além de ser
inconstitucional. Foi também (e continua a ser) – noutro plano –
democraticamente incorrecta e indesejável. Em democracia, e num sistema de
governo de base parlamentar, o governo é ( e deve ser) politicamente
responsável perante o Parlamento pela actuação que desenvolve no desempenho das
suas funções: como pode o governo responder pela política criminal (e pelas
demais políticas públicas a cargo do Ministério Público), se aquela e estas não
são por ele definidas? Quererá alguém ser coerente e estabelecer uma
responsabilidade política separada do procurador-geral da República perante a
Assembleia da República? Mas passaremos então a ter dois governos, dois poderes
executivos responsáveis perante o parlamento? É totalmente absurdo.
Tão absurdo que, na revisão
constitucional de 1997, o artigo 219.º da CRP reduziu o papel do Ministério
Público à tarefa de «participar na execução da política criminal definida
pelos órgãos de soberania» (CRP, art. 219.º, n.º 1). Mas como, desde 1992,
a Constituição cedeu às pressões corporativas do Ministério Público e lhe
garantiu expressamente uma mal definida «autonomia» (actual art. 219.º, n.º 2),
fica-se sem perceber até onde vai tal autonomia (agora constitucionalizada),
que limites devem defini-la e que poderes de tutela ou superintendência deve o
governo possuir para poder controlá-la em nome do interesse geral.
É certo que uma dependência
hierárquica plena do governo pode apresentar o inconveniente de permitir, em
situações extremas, que o governo, para se proteger a si próprio, ou aos seus
amigos políticos, proíba o Ministério Público de investigar um ou outro crime
em concreto. Não me parece, contudo, que este argumento seja bastante para
fundamentar a necessidade de autonomia do Ministério Público: bastará que na
Constituição se estabeleça, a par da subordinação hierárquica geral do
Ministério Público ao governo, a proibição específica de o governo impedir
qualquer acusação por factos que o Ministério Público considere de carácter
criminoso.
Aliás, a direcção da política
criminal pelo governo – e não pelo Ministério Público – mais se justificará no
dia (não muito longínquo) em que as necessidades imperiosas do bem comum
obrigarem, como se impõe, a substituir o «princípio da legalidade» pelo
«princípio da oportunidade» em matéria de acção penal.
6. Se a autonomia do Ministério
face ao governo é perigosa (por criar um Estado dentro do Estado) e contrária
aos princípios democráticos (por não permitir a responsabilidade política do
governo perante o Parlamento), a invasão pelo Ministério Público das
atribuições dos tribunais é inconstitucional, por contrariar o princípio da
separação dos poderes; e a assunção pelo Ministério Público de poderes de
investigação criminal, em detrimento da Polícia Judiciária, bem como a
colocação desta sob o controlo e a fiscalização daquele, além de gerarem
confusão orgânica e sobreposição funcional, constituem fonte permanente de
conflitos – como a prática tem mostrado, hélas!, abundantemente.
De resto, estas últimas soluções –
também consagradas nos últimos anos pela nossa legislação – acabam por colocar
a Polícia Judiciária fora da alçada do ministro da Justiça, na medida em que
essa polícia passa a ficar incluída na esfera de autonomia do Ministério
Público face ao governo.
De tudo resulta uma inaceitável
hiper-valorização do Ministério Pública – onde os «advogados do Estado» (que
deviam especializar-se em actuar nos tribunais face aos advogados dos cidadãos)
conquistam sucessivamente, numa lógica imparável de expansão corporativa, um
regime de autonomia face ao governo, uma condição de magistrados equiparados a
juízes, um feixe de funções privativas dos tribunais, um punhado de funções
próprias da Polícia Judiciária e, por último, o controlo desta e a sua
subtracção aos poderes directivos do governo.
Note-se que a este raro conjunto
de privilégios exorbitantes não têm correspondido quaisquer resultados
visíveis: o escândalo das «prescrições», os êxitos assinaláveis da Polícia
Judiciária – na parte em que ainda tem competência para actuar sozinha –, e a
falta de sucesso no combate à corrupção, provam à saciedade que o Ministério
Público tem conseguido aumentar significativamente o seu poder, mas não sabe o
que há-de fazer com ele.
7. A estas considerações de
índole genérica importa acrescentar outras de carácter mais específico:
queremos referir-nos à posição do Ministério Público no processo penal, por um
lado, e no processo do contencioso administrativo e fiscal, por outro.
Comecemos pelo processo penal.
Simbolicamente, enquanto nos
países anglo-saxónicos o juiz está na mesa de cima, e em baixo, ao mesmo, estão
o promotor público e o advogado de defesa, em Portugal – bem diferentemente – o
juiz e o agente do Ministério Público estão na mesa de cima, lado a lado (e por
vezes falando um com o outro ao ouvido), ficando o arguido e o advogado da
defesa cá em baixo, como que esmagados pela majestas do Estado que sobre
eles se projecta do alto. Na Alemanha nazi também era assim, mas a partir da
democratização/desnazificação tudo mudou – e o Ministério Público passou para
baixo, ao mesmo nível da defesa.
Em segundo lugar, existe na
prática uma grande promiscuidade entre o juiz e o Ministério Público – que costumam
falar sobre os processos sem ser na presença do advogado de defesa, ao passo
que este não tem por lei o direito de falar com o juiz sempre que precisar. Não
há igualdade das partes.
Em terceiro lugar, se a defesa
não cumprir os prazos fixados na lei sofre as consequências negativas nos seus
direitos processuais, ao passo que o Ministério Público não é nunca sancionado
ou prejudicado na sua posição processual se deixar de cumprir – como tantas
vezes acontece – os prazos legalmente determinados.
Em quarto lugar (e bem pior), o
Ministério Público não tem prazo para acusar um cidadão da prática de qualquer
crime: pode levar os anos que quiser a investigar, a estudar, a inquirir – sem que
o suspeito possa esboçar qualquer defesa – e nunca acusar, ou só acusar na
véspera do prazo de prescrição. O desequilíbrio é manifesto entre os poderes do
estado e os direitos do cidadão.
Em quinto lugar, e por último, o
Ministério Público (tal como a Polícia Judiciária) podem praticar, e praticam,
actos de instrução criminal – quando num Estado de direito democrático toda a
actividade material de instrução deveria ser da competência de um juiz (v. as
conclusões do I Congresso Nacional dos Advogados, na Rev. da Ord. dos
Advogados, ano 32, 1972, pp. 457 – 461, e o artigo 31.º, n.º 4, do texto
proposto por Francisco Sá Carneiro em Uma Constituição para os anos 80 –
Contributo para um projecto de revisão, «Publicações Dom Quixote»,
Lisboa, 1979, p. 38).
Os poderes e a posição do
Ministério Público são, pois, manifestamente excessivos, no Portugal de hoje,
em matéria de processo penal.
8. O mesmo se pode dizer, embora
sem idêntica gravidade, dos poderes e da posição do Ministério Público nos processo
do contencioso administrativo e fiscal.
Consideremos, por todos, o artigo
27.º («direitos do Ministério Público») da Lei de Processo nos tribunais
administrativos, aprovada pelo decreto-lei n.º 267/85, de 16 de Julho.
Quase todos os direitos ou
poderes aí conferidos ao Ministério Público são excepcionais; alguns não
existem noutros países europeus, sendo originalidade portuguesa; mas há um que
por violar gravemente o princípio da igualdade das partes e o próprio princípio
do contraditório merece ser aqui destacado.
Referimo-nos ao poder, conferido
pela alínea c) do artigo 27.º ao Ministério Público, de «emitir parecer sobre a
decisão final a proferir» pelo tribunal.
O que se passa é o seguinte: num
recurso contencioso de anulação interposto por um particular contra um acto de
autoridade da Administração Pública, depois de ouvidas todas as partes e de
produzidas as respectivas alegações finais, o processo é entregue por 14 dias
ao Ministério Público, para que este o examine e emita sobre o caso em
apreciação um «parecer sobre a decisão final a proferir» pelo tribunal. E só
depois é que o tribunal decide, podendo seguir ou não as conclusões do parecer
do Ministério Público, que não é vinculativo (mas que, na práctica, é seguido
na maioria dos casos).
A razão de ser deste mecanismo é
esta: sendo o Direito Administrativo e o Direito Fiscal ramos do direito
complexos e de difícil interpretação e aplicação, e não havendo por enquanto
uma carreira de juízes especializados em Direito Administrativo ou em Direito
Fiscal, é considerado conveniente que os juízes dos tribunais administrativos e
fiscais, antes de proferirem sentença, sejam esclarecidos por um parecer final
do Ministério Público.
A intenção, como se vê, é boa –
mas os resultados são péssimos.
Por um lado, a norma que institui
este mecanismo passa um atestado de incompetência profissional aos juízes do
contencioso administrativo e fiscal, estabelecendo a presunção de que, sem
ajuda exterior, eles não saberão interpretar e aplicar correctamente o direito.
Lá se vai por água abaixo o velho princípio (ainda hoje válido em todos os
ramos do direito) de que jus novit curia («o tribunal conhece o
direito»)…
Por outro lado, o legislador
presume que os representantes do Ministério Público conhecem melhor o Direito
Administrativo e o Direito Fiscal do que os juízes – o que nem sempre é verdade
–, e parte dessa presunção para uma inadmissível e abusiva solução, que
consiste em colocar o Ministério Público a «esclarecer», a «iluminar», a «aconselhar»
e numa palavra, a «guiar» os juízes na tomada das suas decisões. Trata-se, nem
mais nem menos, de uma nítida violação do princípio da separação dos poderes,
que afecta a plena independência dos tribunais.
Por último, este estranho
mecanismo viola também os direitos dos particulares, na medida em que, se o parecer
final do Ministério Público for contrário aos pontos de vista deles, os
particulares já não poderão responder nem refutar. Tudo se passa no segredo dos
deuses: o parecer final do Ministério Público só é conhecido dos juízes – e não
das partes. De novo estamos aqui perante uma violação do princípio do
contraditório; de novo assistimos aqui a uma indesejável promiscuidade entre o
Ministério Público e os juízes, em detrimento dos direitos dos cidadãos.
9. Com todos estes poderes
excessivos, com todos estes privilégios exorbitantes, o Ministério Público tem
aparecido aos olhos da opinião pública como um ente «quase divinizado». De entre
os três representantes máximos da justiça portuguesa – o ministro da Justiça, o
presidente do Supremo Tribunal de Justiça (também, por inerência , presidente
do Conselho Superior da Magistratura) e o procurador-geral da República –, é o
último que surge e se comporta como se fosse o primeiro. Conseguiu apagar os
outros dois e tornou-se no grande protagonista da justiça. Quando fala,
aceita-se que fala em nome dela, no seu conjunto. A ponto de, quando é critica
pelo exercício das suas funções, responder habitualmente que tais críticas põem
em causa a independência dos tribunais… Como se alguma vez uma crítica ao
Ministério Público fosse uma crítica aos tribunais! Como se o Ministério
Público fosse parte integrante dos tribunais! Como se ao Ministério Público
coubesse falar em nome dos tribunais – ou, sequer, em nome do sistema judicial!
Daqui até uma completa inversão
das posições relativas dos vários órgãos do Estado vai apenas um passo – que muitos
jornalistas ignorantes não hesitam em dar. É frequente ouvir dizer-se, por
exemplo, que «o Ministério Público exige ao Supremo Tribunal de Justiça»
uma dada providência (em vez de requer ou solicita); e já uma
vez, quando o primeiro-ministro chamou ao seu gabinete o procurador-geral da
República, certo canal de televisão noticiava: «o primeiro-ministro vai ser
recebido pelo procurador-geral da República»…
Ora, a verdade é que o governo e
os tribunais são órgãos de soberania, enquanto o Ministério Público o não é –
constituindo apenas um conjunto de funcionários públicos que defendem a lei perante
os tribunais como advogados do estado.
Mas o verdadeiro poder social de
indigitação dos criminosos caiu nas mãos do Ministério Público, e uma acusação
deste, avidamente aproveitada pela comunicação social, transforma mediaticamente
qualquer acusação em condenação… antes mesmo de os tribunais se pronunciarem!
A presunção de inocência dos
arguidos (até à condenação judicial) cai assim por terra; e, na práctica,
inverte-se o ónus da prova – já não é à acusação que compete demonstrar a culpa
do arguido, é o arguido que tem de ser capaz de demonstrar a sua inocência,
perante uma acusação que o Ministério Público, secundado e ampliado pela
comunicação social, transformou prematuramente em decisão condenatória. Mais
tarde, o julgamento pelo tribunal passa muitas vezes despercebido e já não é,
em bom rigor, uma primeira instância, mas um recurso de apelação – onde o
arguido não comparece como um inocente que aguarda a primeira palavra da
justiça, mas como um condenado que tenta convencer o tribunal de que a primeira
decisão foi errada!
10. Vários dos problemas evocados
não são privativos de Portugal, antes resultaram da conjugação de múltiplos
factores sociológicos que se repetem em todos os países latinos (mas não,
curiosamente, nos povos germânicos, anglo-saxónicos, ou nórdicos…).
Mas outros são fenómenos exclusivamente
português, que carece de uma acção decidida e urgente da parte dos nossos
principais partidos democráticos. Será necessária muita coragem? Não creio.
Muito mais difícil era terminar com o auto-governo faz Forças Armas e subordina-las
ao poder político, através do ministro da Defesa Nacional – e isso foi feito,
em 1982, sem qualquer crise ou sobressalto…
Só há que seguir o exemplo.”
Este texto faz parte de uma obra
colectiva “Justiça em Crise? Crises da Justiça”, Organizada e Prefaciada por
António Barreto, da autoria de Diogo Freitas do Amaral, “O Excesso de Poderes
do Ministério Público em Portugal”, Publicações Dom Quixote, 1.ª Edição, Julho de
2000, págs. 147 a 157.
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