Elmir Duclerc – “Uma Crítica ao Chamado Princípio da Verdade Real”

 

“Muitos autores ainda insistem em incluir dentre os princípios do processo penal o chamado princípio da verdade real, entendido como uma exigência de que a atividade instrutória esteja voltada a descobrir o que efetivamente aconteceu, ao contrário do que ocorre com o processo civil, regido, no particular, pelo princípio da verdade formal – segundo o qual o juiz está autorizado a utilizar uma série de mecanismos para chegar a uma versão conclusiva sobre os fatos que não corresponda, necessariamente, à verdade objectiva.

O problema é que essa ideia de verdade real, embora tão arraigada na nossa cultura processual penal, enfrenta dificuldades insuperáveis.

No plano normativo, percebe-se que não há, no ordenamento jurídico, nenhum dispositivo que lhe dê guarida de forma expressa, tampouco é possível concluir sobre sua existência a partir de qualquer interpretação sistemática e dedutiva do direito posto. Muito ao contrário, e o que é pior, o conceito de verdade real tem sido largamente utilizado para justificar a quebra das garantias processuais consagradas constitucionalmente como, por exemplo, a vedação, às provas obtidas por meios ilícitos, ou para justificar a iniciativa instrutória do juiz que – como já sustentamos – não condiz com o sistema acusatório de processo penal.

No plano estritamente epistemológico, observe-se que na própria expressão já se encontra embutido um indício da sua falência. Falar de verdade real será sempre uma redundância, já que ninguém pode, em sã consciência, falar de uma verdade irreal. Por outro lado, não se pode perder de vista que o próprio conceito de verdade, em qualquer área do conhecimento humano, aponta para algo simplesmente inatingível, e o que se entende por verdade formal no processo civil é, antes de tudo, consequência da natureza dos interesses em conflito. Ou seja, quando as partes de um processo civil discutem sobre bens essencialmente privados, a “verdade” de um fato pode ser construída pela vontade das pessoas envolvidas – ainda que seja uma vontade presumida, por exemplo, pela falta de contestação no prazo legal.

Assim, o que ocorre no processo penal é que as partes não podem dispor sobre a verdade, embora a parte autora – e somente ela – suporte o ônus de deixar totalmente fora de dúvida a sua versão dos fatos, mas isso não significa que o autor deva demonstrar a verdade real ou verdade verdadeira, já que terá sempre à sua frente obstáculos intransponíveis, como veremos em seguida.

As afirmações feitas pelas partes em juízo são expressas sempre na forma de proposições sobre como os fatos aconteceram e sobre como devem repercutir juridicamente. Nessa linha de raciocínio tanto as “teses” fáticas quanto as estritamente jurídicas são insuscetíveis de verificação experimental direta, do mesmo modo que as proposições empíricas de observação. No que se refere à prova das teses fáticas, especificamente, tem-se ainda que ela encerra as mesmas dificuldades de qualquer investigação histórica, ou seja, “a verdade dessas proposições pode ser enunciada somente pelos efeitos produzidos, quer dizer, os sinais do passado (pastness) deixados no presente pelos eventos passados, dos quais aqueles descrevem a ocorrência. Assim, a verdade fática é apenas o resultado de uma ilação de fatos provados do passado com fatos probatórios do presente.

Essa ilação se manifesta na forma de uma inferência indutiva, em que nas premissas estão a descrição do fato que se há de explicar, as provas produzidas e algumas regras de experiência, e na conclusão está a enunciação do fato que se pretende aceito como provado. Como toda a inferência indutiva, tem valor apenas como uma hipótese probabilística, pois um mesmo conjunto de observações e dados historiográficos pode, não raro, admitir diversas explicações. Assim, “a tarefa da investigação judicial […] é eliminar o dilema em favor da hipótese mais simples, dotada de maior capacidade explicativa e, sobretudo, compatível com o maior número de provas e conhecimentos adquiridos com anterioridade”.

Um outro limite à verdade fática que se busca demonstrar no processo seria a subjetividade específica do conhecimento judicial, de acordo com o que observa Ferrajoli:

Toda reconstrução minimamente complexa dos fatos passados equivale, em todo caso, à sua interpretação, que é obtida pelo juiz a partir de hipóteses de trabalho, que, ainda quando precisadas ou modificadas no curso da investigação, o levam a valorizar algumas provas e descuidar-se de outras, e o impedem, às vezes, não apenas de compreender, mas inclusive de ver os dados disponíveis em contraste com elas.

Os fatos investigados num processo criminal, por sua própria natureza, encerram uma carga emotiva maior que os outros, tornando o juiz mais suscetível de ser influenciado por prejulgamentos de toda ordem. Por outro lado, na investigação criminal o erro assume uma importância muito maior, à medida que gera graves e irreparáveis consequências para outra pessoas. Finalmente, a subjetividade do juiz está sujeita a uma espécie de deformação profissional que lhe impõe uma forma jurisdicizada de ver o mundo.

Além de sua própria subjetividade, o juiz se vê a braços, no processo, com as subjetividades dos outros atores processuais (testemunhas, peritos, etc.), o que incrementa ainda mais as dificuldades na busca da verdade objetiva. Por outro lado, o embate direto e ao vivo, entre o juiz e essas fontes de prova, faz do processo, segundo Ferrajoli, um caso único de experimento histórico, o que confere autenticidade às provas judiciais, desde que sejam satisfeitas certas garantias, como o contraditório, a oralidade, a imediação e a publicidade.

O último obstáculo decorre da natureza especificamente jurídica e normativa da investigação judicial. A busca da verdade está necessariamente comprometida com condições de convalidação expressas em regras que disciplinam o processo de comprovação, isto é, que instituem um método legal de comprovação processual.

Dessa forma, só será possível falar de verdade, conforme a lição do mestre italiano, num sentido aproximativo conforme sugerido por Popper, ou seja, comparando duas ou mais teses diferentes sobre o mesmo evento será possível apenas afirmar qual delas é mais plausível, ou mais próxima da verdade.

Isso significa, em última análise, que apesar de todos os mecanismos de controle criados pelo legislador, no momento de aferir se uma tese acusatória está ou não provada haverá sempre um último ato de arbítrio que pertence exclusivamente ao juiz, e que decorre daquilo que Ferrajoli chama de poder de verificação fática, como sendo um dos espaços insuprimíveis (embora redutíveis) de poder judicial.

No moderno Estado de Direito, assim é inevitável que existam nas mãos do juiz alguns espaços de poder, mas é justamente o ideal garantista de construção de uma sociedade radicalmente democrática que exige que esses espaços não elimináveis de poder sejam, pelo menos, reduzidos tanto quanto possível, o que só se consegue através do reforço permanente das garantias processuais. Em suma, nenhuma aspiração metafísica de verdade real pode justificar a quebra ou a relativização das garantias processuais próprias do devido processo legal.

Por fim, é preciso que se diga que a ideia de verdade real não serve sequer para justificar a impossibilidade de presunções no processo penal. Para isso já existe a única e maior presunção, consagrada na CR, a presunção de inocência, contra a qual, evidentemente, nenhuma outra pode prevalecer.”

 

Este texto faz parte da obra “Introdução Aos Fundamentos Do Direito Processual Penal”, Elmir Duclerc, 1.ª Edição, Florianópolis, SC :Empório do Direito, 2016, págs. 71 a 74.

Elmir Duclerc - Promotor de Justiça em Salvador-BA, Mestre e Doutor em Direito, Professor Adjunto de Direito Processual Penal da Universidade Federal da Bahia, membro fundador e ex-presidente do Instituto Baiano de Direito Processual Penal – IBADPP.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Portugal, o País do Respeitinho: Quando a Crítica É Crime

O Juiz e o Cérebro Preditivo: da Inteligência Emocional à Emoção Construída

Expedientes dilatórios - Autor: Hurray Vaynuh