Maria de Fátima Mata-Mouros – “A Independência dos Juízes perante o Ministério Público”

 

I. A independência dos tribunais, requisito da função judicial

Que os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei é hoje um dado adquirido, tão adquirido que, para uma parte considerável dos portugueses, «a independência dos juízes não é incluída entre as qualidades responsáveis pelo bom desempenho da função judicial». «Contudo, a minar a credibilidade desta interpretação está o facto perturbador de 17,3% dos inquiridos serem de opinião que o juiz é um representante do Ministério da Justiça».

A nossa Constituição consagra a independência judicial no seu art. 206.º, à semelhança das Constituições de todas as democracias ocidentais.

Trata-se, com efeito, de uma das regras clássicas do Estado constitucional e uma das garantias essenciais do Estado de Direito democrático.

Na verdade, a independência não pode ser considerada um valor em si mesma. Configura, antes, um instrumento ao serviço da salvaguarda de outros valores: a defesa dos direitos e interesses legítimos dos cidadãos. Compreende-se, assim, que a independência dos tribunais não possa ser separada da vinculação à lei. O pensamento democrático assenta na crença de que o dever de aplicação da lei aprovada por órgãos democráticos constitui a melhor garantia de independência dos juízes perante instruções e ordens ilegítimas de outros órgãos do Estado ou de outras pessoas.

Para isso há que assegurar a independência em todas as vertentes configuráveis, tanto externa como internamente.

Entre nós, o Tribunal Constitucional tem falado em independência subjectiva e objectiva, identificando esta última com o imperativo de submissão exclusiva à lei.

De outro lado, é a independência subjectiva que dita os imperativos de imparcialidade e isenção, exigindo a garantia de um estatuto funcional compatível que simultaneamente os assegure e promova.

«Em boa verdade, ela evoca os conteúdos significativos que tradicionalmente andam ligados à ideia de independência judicial: a autonomia perante os poderes estaduais e correspectivos titulares; a imparcialidade perante os interesses e pretensões dos litigantes; a indiferença diante dos poderes sociais e da opinião pública; a independência perante os restantes juízes (ainda que co-titulares do mesmo colectivo) e perante o poder judicial como um corpo», como salienta Paulo Castro Rangel.

A importância desta última vertente da independência perante os outros juízes ou o poder judicial no seu conjunto (também conhecida por «independência interna») encontrou reflexo na autonomização do conceito de independência subjectiva que alguns autores, como Castanheira Neves, reservam, num sentido restrito, apenas para aquela.

Para o apelo à independência do juiz enquanto dever ético-social, por contra-posição à ideia de privilégio ao serviço dos próprios juízes, reserva o Tribunal Constitucional a referência à «independência vocacional», a qual não dispensa, todavia, a verificação de um quadro legal propício.

Como sublinhou Calamendrei, esta independência judicial do homem-juiz é a que verdadeiramente tem importância e constitui o fim último para o qual devem tender todos os aperfeiçoamentos do ordenamento judicial.

 

II. Independência e imparcialidade

É importante olharmos para estes diversos conceitos de independência judicial sob o prisma dos valores que procuram assegurar e dos interesses que pretendem satisfazer.

Numa lógica vincadamente normativista, Pagés chamou a atenção para o sentido estritamente jurídico da independência, segundo o qual esta apenas pode significar a correcta aplicação das normas, constituindo, em si mesma, um fim imanente ao próprio ordenamento jurídico.

Não deverá, com efeito, confundir-se independência com imparcialidade ou neutralidade. Estas qualidades ou parâmetros de atitudes apenas adquirem relevância para o sistema na medida em que constituem qualidades necessárias para garantir o maior grau possível de sujeição ao ordenamento por parte do aplicador do direito. Ao contrário da independência, estas qualidades não são categorias jurídicas. É possível definir um juiz independente como aquele que se atém exclusivamente ao direito, mas já não é possível definir, pelo menos em termos jurídicos, um juiz imparcial.

Porém, se a independência em sentido jurídico se realiza plenamente com a proibição de relevância jurídica de determinadas subordinações, é no campo prático, ao fim e ao cabo no domínio do facto, que ela deve operar em ordem a não ficar reduzida a uma mera abstracção. Para usar a elucidativa expressão do autor, «do que se trata, em definitivo, é de assegurar uma independência de facto que torne realizável a independência de direito».

É necessário, pois, garantir a desconexão do juiz relativamente ao maior número possível de condicionalismos ou dependências de natureza fáctica, isto é, no domínio das relações políticas, frente aos demais órgãos do Estado, sociais, perante a sociedade e as partes, ou mesmo profissionais, relativamente aos outros órgãos jurisdicionais e demais operadores judiciários.

A independência do juiz deve estabelecer-se em relação com a sociedade, para cujo efeito estabelecem as proibições e incompatibilidades; em relação com outros poderes, para o que se garante a inamovibilidade e toda a estruturação da carreira judicial, mas também haverá que garantir a independência do juiz de toda a subordinação hierárquica no âmbito dos órgãos do poder judicial. É neste ponto que reside uma das mais marcantes diferenças entre juiz e funcionário.

É precisamente na forma de garantir esta última independência do juiz, a independência interna, que residem os problemas.

De modo impressivo, isto é reconhecido por Boaventura Sousa Santos:

»Se não for complementada por um exigente exercício de independência interna, a independência externa terá sempre um pé em falso, ainda que seja só ela a captar as atenções dos cidadãos e dos próprios magistrados».

E na verdade, enquanto a independência frente ao poder executivo e ao poder legislativo tem merecido a atenção da generalidade dos autores, a independência interna, talvez por ser de menor visibilidade política e social, tem caído em esquecimento. No entanto, é esta que tem importância crucial para promover o controlo das desigualdades detectáveis no funcionamento da acção judicial de tribunal para tribunal e, dentro do mesmo tribunal, de juiz para juiz.

E ainda no âmbito da menor atenção que tem merecido a independência interna, podem mesmo classificar-se como raras as reflexões que têm sido orientadas para a sua componente perante o principal mobilizador institucional da acção da justiça: o ministério público.

Penso que é tempo de reflectir neste campo.

 

III. Juízes e ministério público

A importância de manter a independência dos juízes é amplamente reconhecida nos Estados modernos. Ela é essencial para administrar a justiça e garantir a protecção dos direitos fundamentais do homem, bem como as liberdades fundamentais.

São genericamente aceites e acolhidas nas legislações dos modernos Estados de Direito as garantias de independência do juiz. No entanto, o juiz é hoje mais livre precisamente na área em que se impõe uma maior vinculação, isto é, na fundamentação das suas decisões, e não o é suficientemente onde deveria ter maior liberdade: no interior da burocracia da justiça, no seio da sua classe profissional.

A independência, enquanto princípio objectivo estruturante do Estado de Direito, importa deveres para os magistrados, reservando os direitos e garantias para os cidadãos.

A crítica profissional, proveniente de todos os sectores da profissão legal, tal como as pressões sociais provenientes dos seus colegas, forma um mecanismo significativo para o controlo dos juízes.

Os advogados são geralmente a testemunha ocular da justiça tal como ela é administrada. Eles são os agentes informadores da qualidade da justiça e dos episódios da má conduta judiciária. Esta informação pode ser utilizada para controlar os actos judiciários, através da via de recurso. Os advogados podem erguer-se em tribunal contra uma conduta inapropriada ou escrever cartas de reclamação a diversos organismos. Deve duvidar-se, no entanto, da conveniência do uso da imprensa pelas partes, se o juiz não observou as regras preestabelecidas precisamente porque a manipulação da comunicação social pode, afinal, erigir-se em pressão subtil e inaceitável para que o juiz venha a decidir de modo favorável à parte que tenha acesso a esses meios.

É preciso não subestimar a importância das pressões sociais e dos controlos informais.

Se, em jurisdições como a civil, a dualidade de partes assegura, assim, essencialmente através de princípios como o do contraditório, o da publicidade ou o do estabelecimento de instância de recurso, o adequado controlo da independência jurídica do juiz, entendida esta como a estrita vinculação ao direito, na procura da correcta aplicação da lei, outras jurisdições há em que, na ausência das partes, deverá caber necessariamente ao ministério público esse controlo.

Sendo essencialmente as atribuições do ministério público no processo penal que lhe conferem um estatuto de poder, é precisamente aqui que se impõe aprofundar as suas isenção e objectividade.

Encontrando-se aquele liberto da defesa de quaisquer interesses particulares e prosseguindo também a justiça através de estritos critérios de legalidade, o referido controlo, partindo da fundamentação das decisões, longe de constituir um direito, configurará, antes uma obrigação.

Se o princípio democrático exige, para alguns autores, um controlo político da vertente organizativa e administrativa da Justiça (jurisdição), a vertente puramente jurídica exige controlo limitado ao campo do jurídico. Só juridicamente devem ser controladas as decisões, mas aqui impõe-se promover a efectividade deste controlo.

Na verdade, controlar o juiz independente na observância da lei nas suas decisões, longe de pressupor subtrair-lhe independência, significa, reforçá-la, uma vez que esta visa a Justiça, dizendo o Direito. Já se escreveu:

«Não existem controlos em prejuízo da independência, mas independência devido a estes controlos».

Para lograr este efeito, a fundamentação das decisões judiciais apresenta-se, afinal, como o mais importante destes mecanismos que, ao permitirem o controlo das decisões, asseguram a independência dos tribunais.

Três importantes passos foram já dados a respeito da fundamentação das decisões judiciais e merecem, por isso, destaque:

Em primeiro lugar, a revisão, em 1997, da nossa Lei Fundamental precisamente no actual art. 205.º, n.º 1 (que veio substituir o anterior art. 208.º, n.º 1) reforçou a exigência de fundamentação das decisões dos tribunais, deixando melhor explicitado este imperativo constitucional ao sublinhar que ele só não abrange as decisões de mero expediente.

Em segundo lugar, as alterações introduzidas ulteriormente no texto do Código de Processo Penal, ao passarem a exigir a referência e o exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, na motivação da decisão de facto na sentença penal (art. 374.º, n-º 2 do Código de Processo Penal), deram um significativo passo  no sentido do reforço da legitimação do poder judicial através do cumprimento do dever de fundamentação das decisões judicias, gerador de transparência no processo decisório.

Finalmente, e mau-grado as críticas de que foi alvo, seguramente pela novidade introduzida na prática de sempre, o acórdão do Tribunal Constitucional que julgou inconstitucional a norma do n.º 2 do art. 374.º do Código de Processo Penal de 1987, na interpretação segundo a qual a fundamentação das decisões em matéria de facto se basta com a simples enumeração dos meios de prova utilizados em primeira instância, não exigindo a explicação do processo de formação da convicção do tribunal, por violação do dever de fundamentação das decisões dos tribunais previsto no n.º 1 do art.º 205.º da Constituição.

Face a estes parâmetros de independência, é tempo de questionar a relação entre juízes e magistrados do ministério público. A evolução histórica e o direito comparado fornecem úteis elementos de reflexão.

Sendo o ministério público o operador judiciário privilegiado para assegurar a independência judicial interna, residindo o seu melhor posicionamento relativamente aos advogados no acesso incondicional que tem a todos os processos que pendem  nos tribunais, sem qualquer excepção, dotado, assim, de uma potencialidade única para promover a igualdade no procedimento judiciário, caberá perguntar se esta vocação não ficará irremediavelmente comprometida com a formação conjunta que é assegurada a todos os magistrados. Numa mesma escola que, por mais profissionalizante que pretenda ser, não consegue evitar os naturais e fortes laços estabelecidos, para sempre, entre colegas.

E, no entanto, o modelo da legal profession adoptado nos países da common law, de que nos fala Picardi, onde juízes e advogados têm a mesma formação, adoptando uma linguagem comum e pertencendo em alguns casos, como na Inglaterra, inclusivamente à mesma corporação profissional, conquistou para os juízes destes países um grau de independência notável, dos pontos de vista tanto externo como interno, sendo de salientar neste último campo a exclusão da possibilidade de controlo disciplinar dos juízes pelos chefs des offices ou Cours Supérieures. Este modelo permitiu a garantia da imparcialidade do juiz no processo, ao mesmo tempo que favoreceu a afirmação do poder judicial, num sentido do termo bem mais forte do que o alcançado no continente europeu.

A verdade é que, em Inglaterra, a independência dos juízes é um feito cultural mais due institucional: ali, as regras legislativas apenas são a parte visível de um iceberg que mergulha as suas raízes na própria ideia do bench and bar.

Pelo contrário, na Europa Continental, «as ideias da Revolução Francesa degeneraram numa crise de confiança acerca do juiz que, em nome da soberania do julgador, foi reduzido, em pouco tempo, a um estatuto análogo ao da função pública, em que impera uma lógica burocrática que condiciona muitos aspectos da organização das carreiras e mesmo do exercício de funções».

Em França, com a legislação napoleónica, afirma-se o modelo do juiz-funcionário, onde é figura-chave o Grand Juge Ministre de la Justice a quem começa por ser confiada simultaneamente a presidência do Tribunal de Cassation e a gestão da organização judiciária. Foi também sob a sua dependência que foi estabelecido o ministério público, prefigurado, no entanto, desde logo, como um dos principais instrumentos de controlo do juiz.

A partir do século XIX inicia-se um movimento de ideias lento e atormentado, não imune a fases regressivas. A par da inamovibilidade prevista já pelas Constituições da França revolucionária, o princípio da independência da magistratura começa a ser afirmado nas cartas constitucionais europeias. Apesar de todas as resistências e obstáculos, uma certa independência do juiz face a outros funcionários do Estado foi assegurada pela introdução de estatutos especiais para aquele, dotado de garantias suplementares. Prevê-se uma responsabilidade rígida no plano disciplinar, de certo modo uma exigência compreensível perante a afirmação do princípio da irresponsabilidade do juiz perante as partes.

Toda esta evolução ditaria a inserção da nossa actual organização judiciária no modelo com lugar para órgãos específicos de gestão e disciplina da magistratura judicial, por contraposição àquele em que a judicatura representa uma estrutura de poder com regras de designação idênticas às que caracterizam o poder político ou àquele outro em que se encontra sob a tutela do executivo. De qualquer forma, entre nós, o ministério público goza hoje de uma posição institucional de garantia absolutamente ímpar dentro do direito comparado e, como escreve Damião Cunha,

«do facto de o Ministério Público ser exactamente um órgão da Administração da Justiça, decorre que o seu estatuto há-de traduzir aquela ambivalência da sua posição (organicamente, aproxima-se de uma entidade administrativa, funcionalmente, separa-se daquela e aproxima-se da função jurisdicional)».

 

IV. Juízes e ministério público: a formação conjunta e os seus riscos

O centro de Estudos Judiciários (CEJ) foi fundado em 1975, em Lisboa, com objectivos e estrutura que seguem muito de perto a ENM (École Nationale de la Magistrature) francesa, fundada em 1958.

Desde então que juízes e procuradores obtêm a mesma formação teórica inicial, comungando um mesmo estágio junto dos tribunais, onde a maior parte das vezes partilham gabinetes e formadores, numa convivência diária propiciadora das melhores relações sociais e mesmo de amizade. De seguida ingressam nos tribunais, onde não mais deixam de partilhar o mesmo quotidiano, habitando o mesmo espaço, usufruindo das mesmas regalias e actuando numa mesma estrutura fechada sobre si própria, na qual não há, todavia, idêntico lugar para advogados. Quem se admiraria, assim, que as questões mais difíceis ou controversas pudessem involuntariamente ser discutidas fora da sala de audiências, sem intervenção de todos os sujeitos processuais?

O facto de a colocação no ministério público já não constituir um tirocínio da carreira judicial representou um inegável contributo para o aperfeiçoamento da organização judicial, mas será de recear que esta evolução de uma magistratura vestibular para a convivência de duas carreiras paralelas não tenha atingido ainda  o que deveria ser o seu verdadeiro desiderato propiciador da conquista das maiores e melhores garantias efectivas para os cidadãos na aplicação do Direito.

Alguns exemplos e indícios podem ser apresentados.

Uma expressão linguística adoptada nos nossos dias pelos media, a exemplo dos responsáveis pelo poder legislativo e executivo, traduz esta realidade: fala-se hoje de mais nas «magistraturas», em prejuízo da correcta apreensão do funcionamento do «tribunal». Tornou-se comum ouvir referir que «a Procuradoria-Geral da República já apurou», ou «o juiz já investigou», tal como é normalmente afirmado, sendo motivo de orgulho para muito juízes, que «é raro as suas decisões sofrerem recurso interposto pelo ministério público». Não me excluo de um tal sentimento.

A questão a colocar em sede de reflexão sobre a independência dos juízes é, no entanto, a seguinte: será legítimo um tal sentimento?

O que é mais preocupante é que estas afirmações reflectem a tendência que se vem verificando dentro do sistema instituído no sentido do divórcio «por mútuo consentimento» de ambos os operadores judiciários no cumprimento dos respectivos deveres de actuação, em comprometimento flagrante, desde logo, de princípios como o do contraditório, ou o do acusatório em matéria penal, desvirtuando o equilíbrio que só a dialéctica da precedência de promoção e exercício do direito ao recurso ditava, enfim transformando o juiz no principal impulsionador do processo enquanto o procurador aguarda justiça, depois de cumprida a sua missão que quase findou com o encerramento do inquérito.

Quantos recurso são interpostos pelo MP em matéria penal?

Quantos deles incidem exclusivamente sobre um não-recebimento de uma acusação?

Seria interessante fazer este estudo. A este propósito, terá cabimento lembrar que recentes conquistas na área da defesa dos direitos dos cidadãos se devem a impulso dos mandatários forenses, como nos casos das decisões a propósito da fundamentação das decisões e das limitações à convolação.

O problema reside em todo este quadro traduzir ausência de controlo efectivo onde ele devia existir – na fundamentação das decisões -, e exacerbamento dos poderes de cada uma das magistraturas no seio do processo, respectivamente na parte em que cada um preside – em suma, precisamente o resultado inverso do que seria de desejar e do que constitui ainda uma clara decorrência da estrutura acusatória do processo penal, consagrada no art. 32.º da CRP: a participação constitutiva dos sujeitos processuais na declaração do direito ao caso, na expressiva nomenclatura adoptada por Figueiredo Dias.

Existe um risco evidente neste processo: o do voluntarismo dos magistrados como forma de romper os equilíbrios existentes. Será ainda nesta lógica involuntariamente deturpadora de princípios fundamentais do Direito que, sempre em nome da Justiça, a independência do poder judicial pode acabar por se afirmar em desrespeito pela vontade de todos os demais sujeitos processuais, incluindo o ministério público, ditando condenações para além do entendido como a medida da justa aplicação da lei por parte de todos os intervenientes no julgamento.

Esta tendência, a confirmar-se, poderá comprometer o sentido e a função das garantias de imparcialidade e isenção do julgador que se encontram constitucionalmente associadas à estrutura acusatória do processo penal.

Seria injusto, contudo, silenciar momentos de firme independência também vividos no sistema judicial português. Destaco as decisões do Supremo Tribunal de Justiça que fixaram jurisprudência relativamente ao instituto da prescrição em processo penal por elas constituírem, a meu ver, um dos mais complexos exemplos da independência do poder judicial na história recente da justiça em Portugal. E ilustraram, ao mesmo tempo, a independência dos juízes portugueses perante o poder legislativo, demonstrando que não cabe aos tribunais corrigir a lei; perante o poder executivo, ousando afirmar a irrelevância das consequências previsíveis em sede de política criminal para a formação da decisão; e, finalmente, perante o ministério público, ao acolherem uma solução que não servia a validação do excessivo tempo ocupado na realização dos inquéritos.

Se a decisão política toma como referência um critério de futuro, pelo contrário a decisão jurídica realiza-se sobre a base de critérios previamente estabelecidos e sem consideração dos resultados finais da mesma, os quais em nenhum caso podem constituir justificação para a actuação, efectuando-se a fundamentação sempre ex ante. É o poder legislativo que regula o amanhã e o poder executivo que ordena para hoje, enquanto o poder judicial se deve limitar a decidir sobre o ontem.

E estes exemplos são tanto mais significativos quando é certo que, sendo embora «especialmente por intermédio do ministério público que se asseguram as finalidades de uniformização da jurisprudência e de igualdade dos cidadãos perante a lei e a justiça […] particularmente por via dos recursos para uniformizar jurisprudência e de constitucionalidade […] potenciando a unidade do direito e a igualdade dos que recorrem aos Tribunais», nenhuma destas decisões ficou, todavia, a dever-se a impulso do ministério público, tendo a primeira surgido no âmbito de recurso interposto por um assistente e a segunda no âmbito de recurso interposto por um arguido. Mais, no primeiro assento a ser lavrado (que não coincide com o primeiro recurso a ser interposto) o parecer do ministério público recolhido vai no sentido que acaba por ser acolhido na decisão; no segundo, o seu parecer vai no sentido oposto, sendo certo que, não decidindo naturalmente a mesma questão, ambas as decisões assentam, todavia, afinal, na resolução da mesma problemática: na vigência do CP de 1982 (redacção original na expressão de um dos assentos), o mesmo é dizer por crimes eventualmente praticados antes de 1 de Outubro de 1995 (expressão do outro assento) a constituição do agente como arguido perante o ministério público não tem eficácia interruptiva do prazo de prescrição do procedimento criminal, quer esta constituição tenha tido lugar antes ou depois da entrada em vigor das alterações introduzidas ao Códigos penal pela reforma de 1995.

Ambos os assentos foram tirados sem qualquer voto de vencido.

Sendo embora compreensível que não tenham merecido o acolhimento devido junto da opinião pública – por inúmeros factores, a que não será alheio um sentimento de insatisfação seguramente partilhado por todos os juízes -, estas decisões constituem, todavia, um inegável e superior exemplo da afirmação do direito pela independência do poder judicial de que todos nos devemos orgulhar.

Não posso, assim, terminar esta reflexão sem colocar a seguinte questão: seriam precisos tantos anos para afirmar o que a lei inequivocamente diz se os agentes das duas magistraturas não tivessem tantos factores em comum no nosso sistema judiciário?

As exigências impostas pela necessidade de coexistência nos mesmos espaço e círculo profissional são tão fortes quanto invisíveis, tão determinantes quanto indecifráveis, tão poderosas quanto imperceptíveis.

Não é suficiente continuar a evoluir apenas no seio da abstração dos conceitos. É imperativo não deixar estéril o recente reconhecimento do legislador de que não será a autonomia do ministério público o garante final da independência dos tribunais, mas antes a independência dos respectivos titulares. Para tanto, fundamental será, todavia, afirmar e promover a efectiva independência dos juízes perante a autonomia do ministério público e isso, temo bem, dificilmente será alcançado enquanto o paralelismo das duas carreiras continuar tangenciado pela formação unida e a inserção institucional de ambas no interior dos tribunais.

Penso que é a este nível que ainda haverá muito por fazer, no sentido do aprofundamento da independência dos juízes e dos tribunais. De há muito que o refiro, e ouço a mesma preocupação a outros juízes e procuradores. Daí que a novidade introduzida pelo pacto da justiça neste preciso ponto, ao prever finalmente a formação separada entre magistrados do ministério público e judicatura, mereça o meu aplauso. Aguardemos, no entanto, pela concretização da medida.”

 

“Este texto tem por base a comunicação a comunicação da autora ao I Encontro Internacional de Conselhos Superiores da Magistratura, subordinado ao tema «A Independência do Poder Judicial, o Relacionamento com os Outros Poderes de Estado e o Recrutamento dos Juízes», que decorreu em Oeiras de 18 a 20 de Março de 1999, publicada in Conselho Superior da Magistratura de Portugal (ed.), A Independência do Poder Judicial, o Relacionamento com os Outros Poderes de Estado e o Recrutamento dos Juízes, Março de 1999”. Esta é a menção que consta na nota de rodapé do capítulo “A Independência dos Juízes perante o Ministério Público”, cujo texto integral consta supra, que integra a obra da autora, Maria de Fátima Mata-Mouros, “Direito à Inocência - Ensaio de Processo Penal e Jornalismo Judiciário”, Princípia Editora, Estoril, 1.ª Edição, Fevereiro de 2007, págs. 173 a 185.

 

Maria de Fátima Mata-Mouro de Aragão Soares Homem – Actualmente (18-08-2024) Juíza Conselheira na 1ª Secção do Tribunal de Contas; Doutorada em Direito; Pós-Graduada em Estudos Europeus; foi Juíza Conselheira  no Tribunal Constitucional; foi Juiz ad-hoc do TEDH; foi Desembargadora do Tribunal da Relação de Évora; foi Juiz de Direito nas Varas Criminais de Lisboa; foi Juiz de Instrução no Tribunal Central de Instrução Criminal; tendo ainda exercido funções como Juiz de Direito e Juiz de Instrução Criminal em Loures, assim como Juiz de Direito nos Juízos Cíveis de Lisboa e no Tribunal de Comarca de Loulé – para mais informação sobre a actividade desenvolvida, obras publicadas, palestras, etc…, disponível a consulta no site do TdC aqui: https://www.tcontas.pt/pt-pt/TribunalContas/Equipa/Pages/Juiza-Conselheira-Maria-Fatima_Mata_Mouros.aspx

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