Maria de Fátima Mata-Mouros – “A Independência dos Juízes perante o Ministério Público”
“I. A independência dos
tribunais, requisito da função judicial
Que os tribunais são
independentes e apenas estão sujeitos à lei é hoje um dado adquirido, tão adquirido
que, para uma parte considerável dos portugueses, «a independência dos juízes
não é incluída entre as qualidades responsáveis pelo bom desempenho da função
judicial». «Contudo, a minar a credibilidade desta interpretação está o facto
perturbador de 17,3% dos inquiridos serem de opinião que o juiz é um
representante do Ministério da Justiça».
A nossa Constituição consagra a
independência judicial no seu art. 206.º, à semelhança das Constituições de
todas as democracias ocidentais.
Trata-se, com efeito, de uma das
regras clássicas do Estado constitucional e uma das garantias essenciais do
Estado de Direito democrático.
Na verdade, a independência não
pode ser considerada um valor em si mesma. Configura, antes, um instrumento ao
serviço da salvaguarda de outros valores: a defesa dos direitos e interesses
legítimos dos cidadãos. Compreende-se, assim, que a independência dos tribunais
não possa ser separada da vinculação à lei. O pensamento democrático assenta na
crença de que o dever de aplicação da lei aprovada por órgãos democráticos
constitui a melhor garantia de independência dos juízes perante instruções e
ordens ilegítimas de outros órgãos do Estado ou de outras pessoas.
Para isso há que assegurar a
independência em todas as vertentes configuráveis, tanto externa como
internamente.
Entre nós, o Tribunal
Constitucional tem falado em independência subjectiva e objectiva,
identificando esta última com o imperativo de submissão exclusiva à lei.
De outro lado, é a independência
subjectiva que dita os imperativos de imparcialidade e isenção, exigindo a
garantia de um estatuto funcional compatível que simultaneamente os assegure e
promova.
«Em boa verdade, ela evoca os
conteúdos significativos que tradicionalmente andam ligados à ideia de
independência judicial: a autonomia perante os poderes estaduais e
correspectivos titulares; a imparcialidade perante os interesses e pretensões
dos litigantes; a indiferença diante dos poderes sociais e da opinião pública;
a independência perante os restantes juízes (ainda que co-titulares do mesmo
colectivo) e perante o poder judicial como um corpo», como salienta Paulo
Castro Rangel.
A importância desta última
vertente da independência perante os outros juízes ou o poder judicial no seu
conjunto (também conhecida por «independência interna») encontrou reflexo na
autonomização do conceito de independência subjectiva que alguns autores, como
Castanheira Neves, reservam, num sentido restrito, apenas para aquela.
Para o apelo à independência do
juiz enquanto dever ético-social, por contra-posição à ideia de privilégio ao
serviço dos próprios juízes, reserva o Tribunal Constitucional a referência à
«independência vocacional», a qual não dispensa, todavia, a verificação de um
quadro legal propício.
Como sublinhou Calamendrei, esta
independência judicial do homem-juiz é a que verdadeiramente tem importância e
constitui o fim último para o qual devem tender todos os aperfeiçoamentos do
ordenamento judicial.
II. Independência e
imparcialidade
É importante olharmos para estes
diversos conceitos de independência judicial sob o prisma dos valores que
procuram assegurar e dos interesses que pretendem satisfazer.
Numa lógica vincadamente
normativista, Pagés chamou a atenção para o sentido estritamente jurídico da
independência, segundo o qual esta apenas pode significar a correcta aplicação
das normas, constituindo, em si mesma, um fim imanente ao próprio ordenamento
jurídico.
Não deverá, com efeito,
confundir-se independência com imparcialidade ou neutralidade. Estas qualidades
ou parâmetros de atitudes apenas adquirem relevância para o sistema na medida
em que constituem qualidades necessárias para garantir o maior grau possível de
sujeição ao ordenamento por parte do aplicador do direito. Ao contrário da
independência, estas qualidades não são categorias jurídicas. É possível
definir um juiz independente como aquele que se atém exclusivamente ao direito,
mas já não é possível definir, pelo menos em termos jurídicos, um juiz
imparcial.
Porém, se a independência em
sentido jurídico se realiza plenamente com a proibição de relevância jurídica
de determinadas subordinações, é no campo prático, ao fim e ao cabo no domínio
do facto, que ela deve operar em ordem a não ficar reduzida a uma mera
abstracção. Para usar a elucidativa expressão do autor, «do que se trata, em
definitivo, é de assegurar uma independência de facto que torne realizável a
independência de direito».
É necessário, pois, garantir a
desconexão do juiz relativamente ao maior número possível de condicionalismos
ou dependências de natureza fáctica, isto é, no domínio das relações políticas,
frente aos demais órgãos do Estado, sociais, perante a sociedade e as partes,
ou mesmo profissionais, relativamente aos outros órgãos jurisdicionais e demais
operadores judiciários.
A independência do juiz deve
estabelecer-se em relação com a sociedade, para cujo efeito estabelecem as
proibições e incompatibilidades; em relação com outros poderes, para o que se
garante a inamovibilidade e toda a estruturação da carreira judicial, mas
também haverá que garantir a independência do juiz de toda a subordinação
hierárquica no âmbito dos órgãos do poder judicial. É neste ponto que reside
uma das mais marcantes diferenças entre juiz e funcionário.
É precisamente na forma de
garantir esta última independência do juiz, a independência interna, que
residem os problemas.
De modo impressivo, isto é
reconhecido por Boaventura Sousa Santos:
»Se não for
complementada por um exigente exercício de independência interna, a
independência externa terá sempre um pé em falso, ainda que seja só ela a
captar as atenções dos cidadãos e dos próprios magistrados».
E na verdade, enquanto a independência
frente ao poder executivo e ao poder legislativo tem merecido a atenção da
generalidade dos autores, a independência interna, talvez por ser de menor
visibilidade política e social, tem caído em esquecimento. No entanto, é esta
que tem importância crucial para promover o controlo das desigualdades
detectáveis no funcionamento da acção judicial de tribunal para tribunal e,
dentro do mesmo tribunal, de juiz para juiz.
E ainda no âmbito da menor
atenção que tem merecido a independência interna, podem mesmo classificar-se
como raras as reflexões que têm sido orientadas para a sua componente perante o
principal mobilizador institucional da acção da justiça: o ministério público.
Penso que é tempo de reflectir
neste campo.
III. Juízes e ministério
público
A importância de manter a
independência dos juízes é amplamente reconhecida nos Estados modernos. Ela é
essencial para administrar a justiça e garantir a protecção dos direitos
fundamentais do homem, bem como as liberdades fundamentais.
São genericamente aceites e
acolhidas nas legislações dos modernos Estados de Direito as garantias de
independência do juiz. No entanto, o juiz é hoje mais livre precisamente na
área em que se impõe uma maior vinculação, isto é, na fundamentação das suas
decisões, e não o é suficientemente onde deveria ter maior liberdade: no
interior da burocracia da justiça, no seio da sua classe profissional.
A independência, enquanto
princípio objectivo estruturante do Estado de Direito, importa deveres para os
magistrados, reservando os direitos e garantias para os cidadãos.
A crítica profissional,
proveniente de todos os sectores da profissão legal, tal como as pressões
sociais provenientes dos seus colegas, forma um mecanismo significativo para o
controlo dos juízes.
Os advogados são geralmente a
testemunha ocular da justiça tal como ela é administrada. Eles são os agentes
informadores da qualidade da justiça e dos episódios da má conduta judiciária.
Esta informação pode ser utilizada para controlar os actos judiciários, através
da via de recurso. Os advogados podem erguer-se em tribunal contra uma conduta
inapropriada ou escrever cartas de reclamação a diversos organismos. Deve
duvidar-se, no entanto, da conveniência do uso da imprensa pelas partes, se o
juiz não observou as regras preestabelecidas precisamente porque a manipulação
da comunicação social pode, afinal, erigir-se em pressão subtil e inaceitável
para que o juiz venha a decidir de modo favorável à parte que tenha acesso a
esses meios.
É preciso não subestimar a
importância das pressões sociais e dos controlos informais.
Se, em jurisdições como a civil,
a dualidade de partes assegura, assim, essencialmente através de princípios
como o do contraditório, o da publicidade ou o do estabelecimento de instância
de recurso, o adequado controlo da independência jurídica do juiz, entendida
esta como a estrita vinculação ao direito, na procura da correcta aplicação da
lei, outras jurisdições há em que, na ausência das partes, deverá caber
necessariamente ao ministério público esse controlo.
Sendo essencialmente as
atribuições do ministério público no processo penal que lhe conferem um
estatuto de poder, é precisamente aqui que se impõe aprofundar as suas isenção
e objectividade.
Encontrando-se aquele liberto da
defesa de quaisquer interesses particulares e prosseguindo também a justiça
através de estritos critérios de legalidade, o referido controlo, partindo da
fundamentação das decisões, longe de constituir um direito, configurará, antes
uma obrigação.
Se o princípio democrático exige,
para alguns autores, um controlo político da vertente organizativa e
administrativa da Justiça (jurisdição), a vertente puramente jurídica exige
controlo limitado ao campo do jurídico. Só juridicamente devem ser controladas
as decisões, mas aqui impõe-se promover a efectividade deste controlo.
Na verdade, controlar o juiz
independente na observância da lei nas suas decisões, longe de pressupor
subtrair-lhe independência, significa, reforçá-la, uma vez que esta visa a
Justiça, dizendo o Direito. Já se escreveu:
«Não existem
controlos em prejuízo da independência, mas independência devido a estes
controlos».
Para lograr este efeito, a
fundamentação das decisões judiciais apresenta-se, afinal, como o mais
importante destes mecanismos que, ao permitirem o controlo das decisões,
asseguram a independência dos tribunais.
Três importantes passos foram já
dados a respeito da fundamentação das decisões judiciais e merecem, por isso,
destaque:
Em primeiro lugar, a revisão, em
1997, da nossa Lei Fundamental precisamente no actual art. 205.º, n.º 1 (que
veio substituir o anterior art. 208.º, n.º 1) reforçou a exigência de
fundamentação das decisões dos tribunais, deixando melhor explicitado este
imperativo constitucional ao sublinhar que ele só não abrange as decisões de
mero expediente.
Em segundo lugar, as alterações
introduzidas ulteriormente no texto do Código de Processo Penal, ao passarem a
exigir a referência e o exame crítico das provas que serviram para formar a
convicção do tribunal, na motivação da decisão de facto na sentença penal (art.
374.º, n-º 2 do Código de Processo Penal), deram um significativo passo no sentido do reforço da legitimação do poder
judicial através do cumprimento do dever de fundamentação das decisões
judicias, gerador de transparência no processo decisório.
Finalmente, e mau-grado as
críticas de que foi alvo, seguramente pela novidade introduzida na prática de
sempre, o acórdão do Tribunal Constitucional que julgou inconstitucional a
norma do n.º 2 do art. 374.º do Código de Processo Penal de 1987, na interpretação
segundo a qual a fundamentação das decisões em matéria de facto se basta com a
simples enumeração dos meios de prova utilizados em primeira instância, não
exigindo a explicação do processo de formação da convicção do tribunal, por
violação do dever de fundamentação das decisões dos tribunais previsto no n.º 1
do art.º 205.º da Constituição.
Face a estes parâmetros de
independência, é tempo de questionar a relação entre juízes e magistrados do
ministério público. A evolução histórica e o direito comparado fornecem úteis
elementos de reflexão.
Sendo o ministério público o
operador judiciário privilegiado para assegurar a independência judicial
interna, residindo o seu melhor posicionamento relativamente aos advogados no
acesso incondicional que tem a todos os processos que pendem nos tribunais, sem qualquer excepção, dotado,
assim, de uma potencialidade única para promover a igualdade no procedimento
judiciário, caberá perguntar se esta vocação não ficará irremediavelmente comprometida
com a formação conjunta que é assegurada a todos os magistrados. Numa mesma
escola que, por mais profissionalizante que pretenda ser, não consegue evitar
os naturais e fortes laços estabelecidos, para sempre, entre colegas.
E, no entanto, o modelo da legal
profession adoptado nos países da common law, de que nos fala
Picardi, onde juízes e advogados têm a mesma formação, adoptando uma linguagem
comum e pertencendo em alguns casos, como na Inglaterra, inclusivamente à mesma
corporação profissional, conquistou para os juízes destes países um grau de
independência notável, dos pontos de vista tanto externo como interno, sendo de
salientar neste último campo a exclusão da possibilidade de controlo
disciplinar dos juízes pelos chefs des offices ou Cours Supérieures.
Este modelo permitiu a garantia da imparcialidade do juiz no processo, ao mesmo
tempo que favoreceu a afirmação do poder judicial, num sentido do termo bem
mais forte do que o alcançado no continente europeu.
A verdade é que, em Inglaterra, a
independência dos juízes é um feito cultural mais due institucional: ali, as
regras legislativas apenas são a parte visível de um iceberg que mergulha as
suas raízes na própria ideia do bench and bar.
Pelo contrário, na Europa
Continental, «as ideias da Revolução Francesa degeneraram numa crise de
confiança acerca do juiz que, em nome da soberania do julgador, foi reduzido,
em pouco tempo, a um estatuto análogo ao da função pública, em que impera uma
lógica burocrática que condiciona muitos aspectos da organização das carreiras
e mesmo do exercício de funções».
Em França, com a legislação
napoleónica, afirma-se o modelo do juiz-funcionário, onde é figura-chave o Grand
Juge Ministre de la Justice a quem começa por ser confiada simultaneamente
a presidência do Tribunal de Cassation e a gestão da organização judiciária. Foi
também sob a sua dependência que foi estabelecido o ministério público,
prefigurado, no entanto, desde logo, como um dos principais instrumentos de
controlo do juiz.
A partir do século XIX inicia-se
um movimento de ideias lento e atormentado, não imune a fases regressivas. A par
da inamovibilidade prevista já pelas Constituições da França revolucionária, o
princípio da independência da magistratura começa a ser afirmado nas cartas
constitucionais europeias. Apesar de todas as resistências e obstáculos, uma
certa independência do juiz face a outros funcionários do Estado foi assegurada
pela introdução de estatutos especiais para aquele, dotado de garantias
suplementares. Prevê-se uma responsabilidade rígida no plano disciplinar, de
certo modo uma exigência compreensível perante a afirmação do princípio da
irresponsabilidade do juiz perante as partes.
Toda esta evolução ditaria a
inserção da nossa actual organização judiciária no modelo com lugar para órgãos
específicos de gestão e disciplina da magistratura judicial, por contraposição
àquele em que a judicatura representa uma estrutura de poder com regras de
designação idênticas às que caracterizam o poder político ou àquele outro em que
se encontra sob a tutela do executivo. De qualquer forma, entre nós, o
ministério público goza hoje de uma posição institucional de garantia
absolutamente ímpar dentro do direito comparado e, como escreve Damião Cunha,
«do facto de o
Ministério Público ser exactamente um órgão da Administração da Justiça,
decorre que o seu estatuto há-de traduzir aquela ambivalência da sua posição
(organicamente, aproxima-se de uma entidade administrativa, funcionalmente,
separa-se daquela e aproxima-se da função jurisdicional)».
IV. Juízes e ministério
público: a formação conjunta e os seus riscos
O centro de Estudos Judiciários
(CEJ) foi fundado em 1975, em Lisboa, com objectivos e estrutura que seguem
muito de perto a ENM (École Nationale de la Magistrature) francesa, fundada em
1958.
Desde então que juízes e
procuradores obtêm a mesma formação teórica inicial, comungando um mesmo
estágio junto dos tribunais, onde a maior parte das vezes partilham gabinetes e
formadores, numa convivência diária propiciadora das melhores relações sociais
e mesmo de amizade. De seguida ingressam nos tribunais, onde não mais deixam de
partilhar o mesmo quotidiano, habitando o mesmo espaço, usufruindo das mesmas
regalias e actuando numa mesma estrutura fechada sobre si própria, na qual não
há, todavia, idêntico lugar para advogados. Quem se admiraria, assim, que as
questões mais difíceis ou controversas pudessem involuntariamente ser
discutidas fora da sala de audiências, sem intervenção de todos os sujeitos
processuais?
O facto de a colocação no
ministério público já não constituir um tirocínio da carreira judicial
representou um inegável contributo para o aperfeiçoamento da organização
judicial, mas será de recear que esta evolução de uma magistratura vestibular
para a convivência de duas carreiras paralelas não tenha atingido ainda o que deveria ser o seu verdadeiro desiderato
propiciador da conquista das maiores e melhores garantias efectivas para os
cidadãos na aplicação do Direito.
Alguns exemplos e indícios podem
ser apresentados.
Uma expressão linguística
adoptada nos nossos dias pelos media, a exemplo dos responsáveis pelo poder
legislativo e executivo, traduz esta realidade: fala-se hoje de mais nas
«magistraturas», em prejuízo da correcta apreensão do funcionamento do «tribunal».
Tornou-se comum ouvir referir que «a Procuradoria-Geral da República já apurou»,
ou «o juiz já investigou», tal como é normalmente afirmado, sendo motivo de
orgulho para muito juízes, que «é raro as suas decisões sofrerem recurso
interposto pelo ministério público». Não me excluo de um tal sentimento.
A questão a colocar em sede de
reflexão sobre a independência dos juízes é, no entanto, a seguinte: será
legítimo um tal sentimento?
O que é mais preocupante é que
estas afirmações reflectem a tendência que se vem verificando dentro do sistema
instituído no sentido do divórcio «por mútuo consentimento» de ambos os
operadores judiciários no cumprimento dos respectivos deveres de actuação, em
comprometimento flagrante, desde logo, de princípios como o do contraditório,
ou o do acusatório em matéria penal, desvirtuando o equilíbrio que só a
dialéctica da precedência de promoção e exercício do direito ao recurso ditava,
enfim transformando o juiz no principal impulsionador do processo enquanto o
procurador aguarda justiça, depois de cumprida a sua missão que quase findou
com o encerramento do inquérito.
Quantos recurso são interpostos
pelo MP em matéria penal?
Quantos deles incidem
exclusivamente sobre um não-recebimento de uma acusação?
Seria interessante fazer este
estudo. A este propósito, terá cabimento lembrar que recentes conquistas na
área da defesa dos direitos dos cidadãos se devem a impulso dos mandatários
forenses, como nos casos das decisões a propósito da fundamentação das decisões
e das limitações à convolação.
O problema reside em todo este
quadro traduzir ausência de controlo efectivo onde ele devia existir – na fundamentação
das decisões -, e exacerbamento dos poderes de cada uma das magistraturas no
seio do processo, respectivamente na parte em que cada um preside – em suma,
precisamente o resultado inverso do que seria de desejar e do que constitui
ainda uma clara decorrência da estrutura acusatória do processo penal,
consagrada no art. 32.º da CRP: a participação constitutiva dos sujeitos
processuais na declaração do direito ao caso, na expressiva nomenclatura adoptada
por Figueiredo Dias.
Existe um risco evidente neste
processo: o do voluntarismo dos magistrados como forma de romper os equilíbrios
existentes. Será ainda nesta lógica involuntariamente deturpadora de princípios
fundamentais do Direito que, sempre em nome da Justiça, a independência do
poder judicial pode acabar por se afirmar em desrespeito pela vontade de todos
os demais sujeitos processuais, incluindo o ministério público, ditando
condenações para além do entendido como a medida da justa aplicação da lei por
parte de todos os intervenientes no julgamento.
Esta tendência, a confirmar-se,
poderá comprometer o sentido e a função das garantias de imparcialidade e
isenção do julgador que se encontram constitucionalmente associadas à estrutura
acusatória do processo penal.
Seria injusto, contudo, silenciar
momentos de firme independência também vividos no sistema judicial português.
Destaco as decisões do Supremo Tribunal de Justiça que fixaram jurisprudência
relativamente ao instituto da prescrição em processo penal por elas constituírem,
a meu ver, um dos mais complexos exemplos da independência do poder judicial na
história recente da justiça em Portugal. E ilustraram, ao mesmo tempo, a
independência dos juízes portugueses perante o poder legislativo, demonstrando
que não cabe aos tribunais corrigir a lei; perante o poder executivo, ousando
afirmar a irrelevância das consequências previsíveis em sede de política
criminal para a formação da decisão; e, finalmente, perante o ministério
público, ao acolherem uma solução que não servia a validação do excessivo tempo
ocupado na realização dos inquéritos.
Se a decisão política toma como
referência um critério de futuro, pelo contrário a decisão jurídica realiza-se
sobre a base de critérios previamente estabelecidos e sem consideração dos
resultados finais da mesma, os quais em nenhum caso podem constituir
justificação para a actuação, efectuando-se a fundamentação sempre ex ante.
É o poder legislativo que regula o amanhã e o poder executivo que ordena para
hoje, enquanto o poder judicial se deve limitar a decidir sobre o ontem.
E estes exemplos são tanto mais
significativos quando é certo que, sendo embora «especialmente por intermédio
do ministério público que se asseguram as finalidades de uniformização da
jurisprudência e de igualdade dos cidadãos perante a lei e a justiça […]
particularmente por via dos recursos para uniformizar jurisprudência e de
constitucionalidade […] potenciando a unidade do direito e a igualdade dos que
recorrem aos Tribunais», nenhuma destas decisões ficou, todavia, a dever-se a
impulso do ministério público, tendo a primeira surgido no âmbito de recurso
interposto por um assistente e a segunda no âmbito de recurso interposto por um
arguido. Mais, no primeiro assento a ser lavrado (que não coincide com o
primeiro recurso a ser interposto) o parecer do ministério público recolhido
vai no sentido que acaba por ser acolhido na decisão; no segundo, o seu parecer
vai no sentido oposto, sendo certo que, não decidindo naturalmente a mesma
questão, ambas as decisões assentam, todavia, afinal, na resolução da mesma
problemática: na vigência do CP de 1982 (redacção original na expressão de um
dos assentos), o mesmo é dizer por crimes eventualmente praticados antes de 1
de Outubro de 1995 (expressão do outro assento) a constituição do agente como
arguido perante o ministério público não tem eficácia interruptiva do prazo de
prescrição do procedimento criminal, quer esta constituição tenha tido lugar
antes ou depois da entrada em vigor das alterações introduzidas ao Códigos penal
pela reforma de 1995.
Ambos os assentos foram tirados
sem qualquer voto de vencido.
Sendo embora compreensível que
não tenham merecido o acolhimento devido junto da opinião pública – por inúmeros
factores, a que não será alheio um sentimento de insatisfação seguramente
partilhado por todos os juízes -, estas decisões constituem, todavia, um
inegável e superior exemplo da afirmação do direito pela independência do poder
judicial de que todos nos devemos orgulhar.
Não posso, assim, terminar esta
reflexão sem colocar a seguinte questão: seriam precisos tantos anos para
afirmar o que a lei inequivocamente diz se os agentes das duas magistraturas
não tivessem tantos factores em comum no nosso sistema judiciário?
As exigências impostas pela
necessidade de coexistência nos mesmos espaço e círculo profissional são tão
fortes quanto invisíveis, tão determinantes quanto indecifráveis, tão poderosas
quanto imperceptíveis.
Não é suficiente continuar a
evoluir apenas no seio da abstração dos conceitos. É imperativo não deixar estéril
o recente reconhecimento do legislador de que não será a autonomia do
ministério público o garante final da independência dos tribunais, mas antes a
independência dos respectivos titulares. Para tanto, fundamental será, todavia,
afirmar e promover a efectiva independência dos juízes perante a autonomia do
ministério público e isso, temo bem, dificilmente será alcançado enquanto o
paralelismo das duas carreiras continuar tangenciado pela formação unida e a
inserção institucional de ambas no interior dos tribunais.
Penso que é a este nível que
ainda haverá muito por fazer, no sentido do aprofundamento da independência dos
juízes e dos tribunais. De há muito que o refiro, e ouço a mesma preocupação a
outros juízes e procuradores. Daí que a novidade introduzida pelo pacto da
justiça neste preciso ponto, ao prever finalmente a formação separada entre
magistrados do ministério público e judicatura, mereça o meu aplauso.
Aguardemos, no entanto, pela concretização da medida.”
“Este texto tem por base a
comunicação a comunicação da autora ao I Encontro Internacional de Conselhos
Superiores da Magistratura, subordinado ao tema «A Independência do Poder
Judicial, o Relacionamento com os Outros Poderes de Estado e o Recrutamento dos
Juízes», que decorreu em Oeiras de 18 a 20 de Março de 1999, publicada in
Conselho Superior da Magistratura de Portugal (ed.), A Independência do
Poder Judicial, o Relacionamento com os Outros Poderes de Estado e
o Recrutamento dos Juízes, Março de 1999”. Esta é a menção que consta na
nota de rodapé do capítulo “A Independência dos Juízes perante o Ministério
Público”, cujo texto integral consta supra, que integra a obra da
autora, Maria de Fátima Mata-Mouros, “Direito à Inocência - Ensaio de Processo
Penal e Jornalismo Judiciário”, Princípia Editora, Estoril, 1.ª Edição, Fevereiro
de 2007, págs. 173 a 185.
Maria de Fátima Mata-Mouro de
Aragão Soares Homem – Actualmente (18-08-2024) Juíza Conselheira na 1ª Secção do Tribunal de Contas; Doutorada em Direito; Pós-Graduada em Estudos
Europeus; foi Juíza Conselheira no
Tribunal Constitucional; foi Juiz ad-hoc do TEDH; foi Desembargadora do
Tribunal da Relação de Évora; foi Juiz de Direito nas Varas Criminais de
Lisboa; foi Juiz de Instrução no Tribunal Central de Instrução Criminal; tendo
ainda exercido funções como Juiz de Direito e Juiz de Instrução Criminal em Loures,
assim como Juiz de Direito nos Juízos Cíveis de Lisboa e no Tribunal de Comarca
de Loulé – para mais informação sobre a actividade desenvolvida, obras
publicadas, palestras, etc…, disponível a consulta no site do TdC aqui: https://www.tcontas.pt/pt-pt/TribunalContas/Equipa/Pages/Juiza-Conselheira-Maria-Fatima_Mata_Mouros.aspx
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