Michelle Gironda Cabrera – “O Inconsciente Inquisitório no Processo Penal Brasileiro”

 

1. Inconsciente Inquisitório e Autoritarismo

Paolo Cappellini iniciou a intervenção oral do quadro das celebrações do décimo aniversário de fundação da Università degli studi di Milano-Bicocca manifestando o profundo respeito e o temor reverencial por ser chamado a tomar a palavra imediatamente após a intervenção introdutória do pai do Código de Processo Penal da República, Giuliano Vassalli. “Hoje, ao contrário”, disse ele, na ocasião, “infelizmente, não posso deixar de acenar ao véu de tristeza após a sua morte em 21 de outubro de 2009, na recordação do ressoar das suas palavras e de um encontro pessoal que não nos será mais concedido repetir”.

Tendo restado, como conforto, seu magistério científico, Cappellini adverte ser possível extrair, da leitura atenta dos textos de Giuliano Vassalli, uma indicação que convida a não se deixar levar por “uma visão demasiado otimista da democracia”. A advertência parece ressoar como antevisão do estado de coisas autoritário e inconstitucional perpretado em solo brasileiro através de decisões judiciais e atuações ministeriais e policiais, no tocante à matéria penal e processual penal.

A primeira das questões analisadas por Cappellini gira em torno dos sistemas processuais, quais sejam, acusatório e inquisitório, regidos, respectivamente, pelos princípios dispositivo e inquisitivo. Adverte que do chamado inquisitório se dão, pelo menos, dois inconscientes e que, também o acusatório possui cadeia de significantes plural. A primeira perspectiva refere-se ao problema da periodização – fórmula dada historicamente como certa, quase de “senso comum” – que vê a passagem do modelo inquisitório ao acusatório pura e simplesmente como um progresso vinculado de maneira estrutural e unívoca com formas estatal-constitucionais, avaliadas segundo modelos de preferência política.

O sistema inquisitório, regido pelo princípio inquisitivo, tem como mais relevante característica a concentração do poder nas mãos do julgador, que detém a gestão da prova. Neste sistema, o acusado é mero objeto de investigação e tido como o detentor da verdade de um crime, da qual deverá dar contas ao inquisidor. O sistema acusatório, ao contrário deve se caracterizar por ser um verdadeiro processo de partes – partes, estas que detenham a gestão da prova e que reconheçam na figura do juiz o garantidor dos direitos fundamentais do acusado.

É nesse lugar que deve se encontrar o processo penal que se queira democrático. A recorrente afirmação segundo a qual o processo acusatório seria expressão dos regimes democráticos, e o processo inquisitório dos regimes autoritários, tem razão de ser e seu nascedouro encontra-se na Inquisição e nas matrizes ibéricas do período colonial.

A configuração social da Inquisição, a condição dos acusados e as possibilidades de contradita perante o Santo Ofício, os próprios inquisidores e os demais funcionários que compunham o aparelho inquisitorial são importantes para se buscar um entendimento – um, ao menos – sobre a expressão inconsciente inquisitório.

A agência inquisitorial utilizava de matrizes biológicas que possuíam apreço à confissão e à tortura. E exatamente aí, onde se traduz o “acontecimento político da Inquisição”, que apareceu o primeiro modelo integrado de criminologia com regramento penal, processual penal e político criminal. Franco Cordero adverte que, no estilo inquisitório, o processo aparece como “tarefa terapêutica”, em que a pena é o remédio a ser ministrado e – querendo ou não – o acusado deverá cooperar. A Inquisição visava a “contenção e eliminação de um mal que ameaçava a existência da humanidade, primeiro como heresia e depois como bruxaria. (…) Praticamente a Inquisição foi a agência-mãe ou o tronco comum de onde se emanariam, mais tarde, todas as demais agências especializadas que exerceriam o poder de controle social.

O ritual acusatório, por outro lado, consiste em uma “aventura agonística” em que o acusado joga com as suas chances e está garantido no espaço psíquico. Como se sabe, no Brasil, desde 1988, o processo penal deve servir de instrumento à efetivação das garantias constitucionais. Como apontou Goldschmidt, “o processo penal de uma nação não é senão um termômetro dos elementos autoritários ou democráticos da sua Constituição”. Se a uma Constituição autoritária vai corresponder um processo penal autoritário e utilitarista, a uma Constituição democrática, necessariamente deve corresponder um processo penal democrático, visto como instrumento a serviço da máxima eficácia do sistema de garantias constitucionais do indivíduo.

Por outro lado, é ingenuidade e reducionismo preocupantes pensar que basta ter uma acusação – garantidora, em tese, da separação das atividades de julgar e acusar – para que se tenha um verdadeiro processo acusatório. “É isso que Jean-Jacques-Régis de Cambacérés faz passar no Código Napoleônico, de 17/11/1808”. Enfim, monstro de duas cabeças, acabando por valer mais a prova secreta que a do contraditório, numa verdadeira fraude. Afinal, o que poderia restar de segurança é o livre convencimento, ou seja, retórica e contra-ataques; basta imunizar a decisão com um belo discurso. Em suma: serviu a Napoleão um tirano; serve a qualquer senhor, não serve à democracia.

Há, entretanto, uma caracterização – quase atmosférica – frequentemente esquecida do inquisitório, correspondente a uma tradição processual italiana que, por atraso histórico, teria se separado daquela das nações mais civilizadas e democráticas, que remete a um confronto ideológico. “Uma das provas é dada pelo fato de que a escola positiva, que, segundo algumas interpretações, seria uma escola de horizontes largos, quase de ‘beneficência’ no campo do direito penal, era absolutamente contrária ao sistema acusatório: e exerceu pressões, no final de 1912, para que Finocchiaro-Aprile, Ministro da Justiça da época, fizesse marcha ré em relação aos seus projetos iniciais que miravam um ingresso mais marcado do rito acusatório”.

No Brasil, conforme crítica – necessária – de Jacinto Coutinho, “por um mundo de motivos, não se consegue fazer viva a Constituição”. Provas disso não faltam, como é o caso do recente posicionamento – de uma escabrosa fragilidade de argumentos – do Supremo Tribunal Federal sobre a execução provisória da sentença condenatória. Tal decisão acaba por demonstrar que, embora não se tenha, no Brasil, um regime político autoritário confessado, há um marcado autoritarismo, que se expressa dramaticamente no sistema penal e processual penal pátrios.

Christiano Fragoso adverte que “a primeira modalidade de autoritarismo existente, de forma explícita, no Brasil atual (aliás, em todo o mundo ocidental) é um profundo autoritarismo psicológico-social. A segunda modalidade de autoritarismo é o ideológico latente, este, não manifesto, nunca explicitado abertamente. O autoritarismo psicológico contemporâneo ressoa desde um estado de coisas individualista, de competitividade, consumismo desenfreado e redução da regulação econômica à sua mínima expressão. “A nova ordem global capitalista neoliberal sacrifica a solidariedade, a segurança social e o valor da pessoa humana.”

Jacinto Coutinho também elabora crítica: “Está-se diante, dentre outras coisas, da maior expressão do jogo ideológico, mormente porque o texto constitucional é incompatível com os postulados do pensamento neoliberal dominante e que quer ser um pensamento único”.

Que agora a balança penda decididamente na direção do chamado “acusatório”, depende de uma progressiva mudança da atmosfera cultural e de que as ideologias sejam, ao menos, confessadas, já que parece razoável supor que, sob certo sentido, manter um posicionamento crítico diante das ideologias pode ser, per si, uma atitude ideológica, obtida a partir da explicação do mundo pelo ceticismo cognitivo absoluto, que oculta outras dimensões do real.

 

2. O Autoritarismo como Ideologia Política: Resquícios do Código Rocco

Ao percorrer as linhas sintomáticas de um inconsciente inquisitório na processualística penal italiana, Paolo Cappellini escolhe algumas histórias para contar ao leitor. Uma delas diz respeito à cultura das provas, em que o jurista italiano se refere àquele que seria o subtítulo de um texto de Federico Stella: “O juiz corpusculariano”. Ele sustenta que “é justamente analisando o contexto do direito e do processo penal que se compreendem as razões da inaceitabilidade de explicações probabilísticas: nos Tribunais e nos Júris não é permitido pronunciar uma sentença em que o acusado provavelmente tenha cometido o crime.” Eis o porquê do nascimento da figura do juiz corpusculariano: “a expressão deriva da ideia de matéria que possui estrutura corpuscular, própria da física clássica newtoniana (…) que está na base da reconstrução, ao menos parcial, das correntes causais, as quais se referem às leis científicas”.

Cappellini adverte que, mesmo com as transformações inseridas pelo código de 1988, deve-se responder a uma questão que, há algum tempo, tem se colocado com paixão e angústia: “os cenários e as transformações do processo penal não estão nos indicando, talvez, um cenário imprevisto do ‘garantismo inquisitório ao acusatório sem garantias’?” Mais atuais do que nunca as críticas e o pessimismo com o qual os defensores da democracia preveem o andar do processo penal, lá e cá. Nuvolone e Pisapia, aliás, já desde 1962, quase em uníssono, pronunciaram que a organização da tais debates e regras baseadas na dialética e na formação pelo debate da prova acabariam encontrando duríssimas resistências.

Na experiência italiana atual, a progressiva marginalização do código, operada, em primeiro lugar, com  a devastação da sua parte especial, e a emersão de uma tendência a articular as técnicas de proteção penal mensurando-as ao objeto de tutela, fazem pensar em uma espécie de arquipélago normativo feito de diferentes ilhas, entre as quais o código aparece como mais vasto e relevante, mas não mais o único.

A novidade é ameaçadora porque traz um fator radical de crise da normatividade, conforme adverte Cappellini. A época atual do penal é de hipertrofia, “com o seu cortejo de ‘penalização selvagem’ e do descolamento das princípios gerais e do seu papel de garantia”. Nesta desfibrada mistura de inconsciente, somente uma coisa parece certa: o autoritarismo como ideologia política.

“Através das malhas da referida reforma, o processo inquisitório reentraria por contrabando”. A afirmação de Cappellini parece ressoar tormentosamente em solo brasileiro, uma vez que, desde a entrada em vigor da Constituição de 1988, a mesma vem sendo, reiteradamente, relativizada. Isso sem contar as intensas reformas que, sob o pretexto de buscarem resolver o problema da criminalidade, operam um punitivismo que, para além de desmedido, é seletivo. Nada mais que um isomorfismo reformista, apto a atuar no inconsciente das massas.

Fica evidente que a história do processo penal “pode ser lida como a história demasiado longa do fatigoso advento, sempre obstaculizado nos fatos, de um aparato de proteção e garantias dispostas em torno do acusado e dos seus direitos”. A justiça penal, assumida como o fim para o qual direito e processo se aglutinam, não é historicamente representável dentro do esquema de um constante progresso na direção da civilidade. Ela conheceu crises e regressões, junto com fases em que foi submetida a projetos tirânicos e de domínio político. E pode vir a conhecer ainda – parece que estamos, aliás, cada vez mais próximos disso. Reaparecem, tenazmente, mesmo nas sociedades modernas, a vontade de torná-la um obstuso meio repressivo e a pretensão de a transformar em ocasião de impunidade privilegiada.

Christiano Fragoso demonstra, através  de conceitos da ciência política e da psicologia social, a existência, no sistema brasileiro, de projetos de lei muito parecidos com os adotados pelos sistemas autoritários. Projetos que buscam, sempre, privilegiar o poder e uma pretensa ordem em detrimento das garantias individuais.

Na experiência brasileira, desde o início da década de 1990, impera um modelo econômico capitalista neoliberal, de raízes políticas socieconômicas gestadas nos Estados Unidos da América e na Inglaterra da década de 70. Esse modelo acabou por infligir uma cultura do medo sem precedentes, altamente lucrativa para determinados setores: o medo vende. E, mais do que isso, leva àquilo que caracteriza a mentalidade autoritária: “a criação de grupos-dentro vs. grupos-fora, que conduz à exclusão social. A exclusão do outro é vista como um ato necessário à manutenção da própria inclusão.” Ao longo da história, pessoas com mentalidade autoritária sempre apelaram à disseminação do medo como forma de ativar a intolerância e de levar à repressão e à punição de pessoas que eram vistas como outsiders. O Código Rocco, editado sob a ditadura fascista de Mussolini e cuja influência ao Código de Processo Penal brasileiro em vigor faz-se sentirmesmo após alterações parciais, continua a ecoar.

Leonardo Boff prefacia Inquisição: um espírito que continua a existir advertindo a respeito das diversas práticas que ainda impregnam o sistema de justiça criminal, que vão desde a pretensão de verdade, passando pelo discurso autoritário e intolerante, que, se antes “apenas” excluía e punia as heresias, hoje se sustenta como política, desafiando e levando à perseguição dos hereges e não apenas das próprias heresias.

No fundo, as inúmeras alterações de 2008 representam verdadeiro retrocesso no caminho que levava, ainda que de forma parcial, à minimização da matriz inquisitória do processo penal em vigor. Como exemplo – serão citados dois, mas é preciso dizer que eles são inúmeros -, a Lei nº 11.719/08 deu nova redação ao texto do art. 362, com a introdução da citação por hora certa nos casos em que o oficial de justiça constata que o acusado se oculta para não ser citado. O novo dispositivo passou a admitir, nessas situações, que o acusado não fosse citado pessoalmente, mas por meio de um vizinho ou familiar. Ora, a partir do momento em que se permite o curso do processo após uma citação ficta, coloca-se a sorte do acusado nas mãos do oficial de justiça, criando-se uma infinita fonte de nulidades.

Sob um véu de deficiências, a referida lei também injeta uma falsa ideia de democratização processual, ao introduzir o espaço para a defesa responder à acusação após o juízo de admissibilidade da peça acusatória. É o isomorfismo reformista da vez: a lei atuou como se estivesse oportunizando ao acusado uma verdadeira defesa prévia, quando, em verdade, tal defesa toma caminho inverso à defesa oferecida em procedimentos que comportam o contraditório prévio (como a prevista no art. 4º, da Lei nº 8.038/90), que têm por finalidade o afastamento das condições da ação e dos pressupostos processuais.

As práticas inquisitoriais se vislumbram de tanto a tanto, baseando-se na confissão e no dogma da pena, na tortura como princípio, na delação como meio e na execução espetacular como fim. O mal-estar produzido pelas agências, sobretudo as policiais, leva à constatação de que o ranço de barbárie, ecoando o espírito do Código Rocco, faz-se presente – e cada vez mais – na processualística penal brasileira.

A fundação de um modo de agir inquisitório ressoa como fruto daquilo que se opera no campo de uma ideação de verdade, que permitiu construir um arcabouço de binômios manejado pelo sistema de justiça criminal: o criminoso como pecador, o crime como pecado, a pena como castigo, a prisão como penitência.

Os métodos da Inquisição invadiram o sistema e desde aí o que se tinha – no que concerne ao uso pelas leis da justiça, agora como poder político – voltava-se à questão dos burgos, ou seja, o uso dos métodos para a gestão de pessoas de pessoas e de lugares.

As reformas, e as recentes decisões dos tribunais superiores no Brasil, demonstram que o processo penal brasileiro caminha a passos largos para uma reprise da conhecida obra de Franz Kafka, na consolidação de um sistema destinado à contenção de inimigos, mais precisamente, dos excluídos.

 

Considerações Finais

A análise crítica a respeito do autoritarismo presente na processualística penal brasileira, realizada, nesse texto, a partir do trabalho de Paolo Cappellini sobre o inconsciente inquisitório, termina aqui, pelo menos por enquanto – em certa medida, desesperançosa com os rumos do sistema de justiça penal; noutro lado, esperançosa para que tudo quanto deva ser dito possa ser dito. E que ecoe. Por efetivamente ecoar, é que se elege, aqui, a lição (absolutamente necessária) de Geraldo Prado: “La permanência y predominância de elementos autoritários, consolidados historicamente en la cultura brasileña, constituyen la razón de base, a la que se suman naturalmente otros factores, para la situación crítica en que se encuentran la teoría y la práctica penales en la actualidad. Identificar este escenario de permanencias autoritarias es, pues, fundamental para comprender la opción metodológica y política de parte de los estudiosos brasileños, en defensa de principios en proceso penal caros a la democracia, principios que raras veces se concretan en la experiencia cotidiana del funcionamiento de nuestro (brasileño) sistema de justicia penal.””

 

Este texto é uma parte de um artigo da obra colectiva, “Mentalidade Inquisitória e Processo Penal no Brasil: Anais do Congresso Internacional – Diálogos sobre Processo Penal entre Brasil e Itália – Volume I”, que teve como organizadores: Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, Leonardo Costa de Paula, Marco Aurélio Nunes da Silveira, Capítulo 7, Michelle Gironda Cabrera, “O Inconsciente Inquisitório no Processo Penal Brasileiro”, 1.ª Edição, Florianópolis, Empório do Direito, 2016, págs. 149 a 162.

Michelle Gironda Cabrera – Doutoranda em Direito Penal Econômico pela Pontifica Universidade Católica do Paraná. Bolsista Capes. Integrante do Grupo de Pesquisa Modernas Tendências do Sistema Criminal e do Grupo de Pesquisa Complexidade e Desenvolvimento Sustentável. Professora Universitária e Advogada.

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