Rubens R. R. Casara – “Processo Penal do Espetáculo”
“A partir da constatação das
atuais condições de produção, Guy Debord
percebeu que toda a vida das sociedades “se apresenta como uma imensa
acumulação de espetáculos. Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma
representação”. Hoje, ser-no-mundo é atuar, representar um papel como condição
para ser percebido. Busca-se, com isso, fugir da sensação de invisibilidade e
insignificância, uma vez que ser é ser percebido (nesse sentido, por todos, T
ÜRCKE).
Sabe-se que o espetáculo é uma
construção social, uma relação intersubjectiva mediada por sensações, em
especial produzidas por imagens e, por vezes, vinculadas a um enredo. O
espetáculo tornou-se também um regulador das expectativas sociais, na medida em
que as imagens produzidas e o enredo desenvolvido passam a condicionar as
relações humanas: as pessoas (que são os consumidores do espetáculo e exercem a
dupla função de atuar e assistir), influenciam no desenvolvimento e são
influenciadas pelo espetáculo.
Em meio aos vários espetáculos
que se acumulam na atual quadra histórica, estão em cartaz os “julgamentos
penais”, em que entram em cena, principalmente, dois valores: a verdade e a
liberdade. O fascínio pelo crime, em um jogo de repulsa e identificação, a fé
nas penas, apresentadas como remédio para os mais variados problemas sociais
(por mais que todas as pesquisas sérias sobre o tema apontem para a ineficácia
da “pena” na prevenção de delitos e na ressocialização de criminosos), somados
a um certo sadismo (na medida em aplicar uma “pena” é, em apertada síntese,
impor um sofrimento) fazem do julgamento penal um objecto privilegiado de
entretenimento.
O problema é que o processo
penal, instrumento de racionalização do poder penal, para atender à finalidade
de entreter, acaba por sofrer uma mutação. No processo penal voltado para o
espetáculo não há espaço para garantir direitos fundamentais.
O espetáculo, como percebeu
Debord, “não deseja chegar a nada que não seja ele mesmo”. A dimensão de
garantia, inerente ao processo penal no Estado Democrático de Direito (marcado
por limites ao exercício do poder), desaparece para ceder lugar à dimensão de
entretenimento.
No processo espetacular
desaparece o diálogo, a construção dialética da solução do caso penal a partir
da atividade das partes, substituído pelo discurso dirigido pelo juiz: um
discurso construído para agradar às maiorias de ocasião, forjadas pelos meios
de comunicação de massa, em detrimento da função contramajoritária de
concretizar os direitos fundamentais (o Poder Judiciário, para concretizar
direitos fundamentais, deveria julgar contra a vontade da maioria). Para
utilizar a terminologia proposta por Flusser, pode-se identificar o Sistema de
Justiça Criminal como um “aparelho” destinado a fazer funcionar o “programa” do
espetáculo. Programa, vale dizer, adequado à tradição em que está inserido o
ator-espectador: um programa autoritário feito para pessoas que se acostumaram
com o autoritarismo, que acreditam na força, em detrimento do conhecimento,
para solucionar os mais diversos e complexos problemas sociais e que percebem
os direitos fundamentais como obstáculos à eficiência do Estado e do mercado.
No processo penal do espetáculo, o desejo de democracia é substituído pelo “desejo
de audiência”.
O enredo do “julgamento penal” é
uma falsificação da realidade, uma representação social distante da
complexidade do fato posta à apreciação do Poder Judiciário. Em apertada
síntese, o fato é descontextualizado, redefinido, adquire tons sensacionalistas
e passa a ser apresentado, em uma perspectiva maniqueísta, como uma luta entre
o bem e o mal, entre os mocinhos e os bandidos. O caso penal passa a ser
tratado como uma mercadoria que deve ser atrativa para ser consumida. A consequência
mais gritante desse fenômeno passa a ser a vulnerabilidade a que fica sujeito o
vilão escolhido para o espetáculo.
Para seguir o programa e atender
ao enredo, construído e dirigido a partir do “desejo de audiência”, a lei pode
ser afastada. O espetáculo aposta na exceção: o respeito à legalidade estrita
revela-se enfadonho e contraproducente; os direitos e garantias fundamentais
podem ser afastados. As formas processuais deixam de ser garantias dos
indivíduos contra a opressão do Estado, uma vez que não devem existir limites à
ação dos mocinhos contra os bandidos (a forma passa a ser um detalhe que pode
ser afastada de acordo com a vontade do “diretor”). Com a desculpa de punir os “bandidos”
que violaram a lei, os “mocinhos” também violam a lei, o que faz com que percam
a superioridade ética que deveria distingui-los. Porém, o enredo que pauta o
processo e é consumido pela sociedade, com os auxílio dos meios de comunicação
de massa, não permite reflexões éticas ou miradas críticas. Tudo é simplório,
acrítico e condicionado por uma tradição autoritária (o importante é a sedução
exercida pelo poder penal e o reforço da ideologia dominante). Nesse quadro,
delações premiadas (que, no fundo, não passam de acordos entre “mocinhos” e “bandidos”,
em que um criminoso é purificado – sem qualquer reflexão crítica – e premiado
com o aval do Estado), violações da cadeia de custódia (com a aceitação de
provas obtidas de forma ilegítima, sem os cuidados exigidos pelo devido
processo legal) e prisões desnecessárias (por vezes, utilizadas para obter
confissões e outras declarações ao gosto do diretor) tornam-se aceitáveis na
lógica do espetáculo, sempre em nome da luta do bem contra o mal.
Note-se que a linguagem do espetáculo é constituída por sintomas da tradição (no caso brasileiro, como já se
disse, uma tradição marcadamente autoritária) e do meio de produção dominantes.
O julgamento-espetáculo, portanto, visa agradar ao espectador-ator social que
assiste/atua condicionado por essa tradição autoritária (não, por caso, atores
sociais autoritários são frequentemente elevados à condição de “heróis” e/ou “salvadores
da pátria”). Nessa toada, os direitos e garantias fundamentais passam a ser
percebidos como obstáculos que devem ser afastados em nome dos desejos de
punição e da eficiência do mercado. Em outras palavras, no processo penal do
espetáculo, os fins justificam os meios (não causa surpresa, portanto, os ataques
de parcela da magistratura ao princípio da presunção de inocência, apontado
como uma das causas da impunidade).
No julgamento-espetáculo, todos
querem exercer bons papéis na trama. Ninguém ousa atuar contra os desejos da
audiência, sempre manipuláveis, seja por um juiz-diretor talentoso, seja pelos
grupos econômicos que detém os meios de comunicação de massa. Paradoxalmente,
os atores jurídicos mais covardes, aqueles que têm medo de decidir contra a
opinião pública(da), os que para atender ao “desejo de audiência” violam a lei
e sonegam direitos fundamentais, são elevados à condição de heróis.
Como nas novelas televisivas, por
vezes, o enredo precisa ser alterado, protagonistas perdem espaço (uma “testemunha
chave” torna-se dispensável, por exemplo) e personagens periféricos ganham
destaque, tudo de acordo com a intuição do diretor, a repercussão conferida
pelos meios de comunicação ou os números dos institutos que pesquisam a opinião
do auditório. Mas, não e só.
Se no processo democrático, a
preocupação é com a reconstrução eticamente possível do fato atribuído ao réu,
no processo penal do espetáculo o que ocorre é o primado do enredo sobre o
fato. O enredo, a trama que envolve os personagens do julgamento-espetáculo, é
conhecido antes de qualquer atividade das partes e o processo caminha até o
final desejado pelo juiz-diretor. O primado do enredo inviabiliza a defesa e o
contraditório, que no processo penal do espetáculo não passam de uma farsa, um
simulacro. Em nome do “desejo de audiência”, as consequências sociais e
econômicas das decisões são desconsideradas (para agradar à audiência, informações
sigilosas vazam à imprensa, imagens são destruídas e fatos são distorcidos),
tragédias acabam transformadas em catástrofes: no processo penal dos espetáculo,
as consequências danosas à sociedade produzidas pelo processo, não raro, são
piores do que as do fato reprovável que se quer punir.
Diante desse quadro, impõe-se
ressignificar o processo penal como um instrumento de garantia contra a
opressão e, portanto, como um instrumento contramajoritário, necessário à
concretização dos direitos fundamentais. Resgatar a dimensão de garantia do
processo penal, por sua vez, passa por reconhecer a necessidade de modificar a
pré-compreensão dos atores jurídicos, afastando-os da tentação populista.”
Este texto faz parte da obra
colectiva que teve como organizadores: Geraldo Prado, Ana Cláudia Ferigato
Choukr, Carlos Eduardo Adriano Japiassú, “Processo Penal e Garantias – Estudos em
homenagem ao professor Fauzi Hassan Choukr”, Rubens R. R. Casara, Capítulo 29, “Processo
Penal do Espetáculo”, 1.ª Edição, Florianópolis: Empório do Direito, 2016,
págs. 437 a 440.
Rubens R. R. Casara – Doutor em
Direito, Mestre em Ciências Penais, Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do
Rio de Janeiro (TJRJ), Membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD) e do Corpo Freudiano.
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