Rui Cunha Martins – “O Mapeamento processual da «verdade» - O Critério Da Democraticidade”

 

“Os valores constitucionais são compatíveis com o Estado de Direito; os regimes da evidência são com ele incompatíveis. Entre ambos, não parece que ao sistema processual possa caber grande margem de escolha – afinal, ele é o microcosmo democrático do Estado de Direito. «Na verdade, o sistema processual está contido no sistema judiciário, por sua vez espécie do sistema constitucional, derivado do sistema político, implementando-se deste modo um complexo de relações sistémicas que metaforicamente pode ser desenhado como de círculos concêntricos, em que aquele de maior diâmetro envolve o menor, e assim sucessivamente, contaminando-se e dirigindo-o com os princípios adoptados na Lei Maior». Vale a pena manter a reflexão ao nível da metáfora dos círculos concêntricos: «como observou Comoglio, o direito fundamental ao processo justo não se cristaliza, nem se exaure, em garantias particulares, mas, ao contrário, está fundamentado na coordenação de várias garantias concorrentes. […] Acima de tudo, as garantias em questão não apenas se somam ou justapõem, mas se articulam em relações mais complexas; na verdade, há entre elas uma interpenetração recíproca, de tal modo que umas conferem efectividade às outras e são também por estas reforçadas, dando lugar a um sistema circular apto a assegurar, em níveis cada vez mais elevados, a protecção do indivíduo por meio do processo».

A circularidade, portanto. Não há, com efeito, lógica sistémica que a dispense. E, contudo, não há lógica sistémica que possa recusar essa reconversão do círculo em linha que se dá com a adopção de um determinado «princípio unificador». Incongruência… sistémica? Ruído sistémico, sem dúvida. Relembre-se, de acordo com a nossa exposição, que todo o sistema processual se estabelece sobre essa tensão entre uma dinâmica que move o processo  ao sabor de critérios de conectividade e uma vontade de sistema que busca a eleição de um referente ordenador. Trata-se, aparentemente, de uma tensão irresolúvel; e assim é; também ela é sistematicamente produzida. É, inclusive, a manutenção em aberto dessa tensão que propriamente evita o enquistamento autoritário  do sistema. Pelo que a eleição de um princípio unificador só pode considerar-se ofensiva do vigor dessa zona de tensionalidade nos casos em que ela omita, de forma manifesta, o reconhecimento da referida zona como parcela constitutiva desse todo complexo que é o sistema processual. Dessa omissão viveu, por exemplo, o sistema processual de modelo inquisitivo, o qual, obcecado com a «verdade dos factos», optava por confiar a gestão da prova a um magistrado pouco dado a subtilezas de ordem tensional.

É este o motivo pelo qual o quadro dos princípios a eleger não pode considerar-se senão parcialmente disponível  - e o critério de admissibilidade não pode ser outro senão o da democraticidade. Em bom rigor, o sistema processual de inspiração democrático-constitucional só pode conceber um e um só «princípio unificador»: a democraticidade; tal como só pode conceber um e um só modelo sistémico: o modelo democrático. Dizer «democrático» é dizer o contrário de «inquisitivo», é dizer o contrário de «misto» e é dizer mais do que «acusatório». Inquisitivo, o sistema não pode legalmente ser; misto também não se vê como (porque se é misto haverá uma parte, pelo menos, que fere a legalidade); acusatório, pode ser, porque se trata de um modelo abarcável pelo arco de legitimidade. Mas só poderá ser à condição: a de que esse modelo acusatório se demonstre capaz de protagonizar essa adequação. Mais do que acusatório, o modelo tem que ser democrático. A opção por um modelo de tipo acusatório não é senão a via escolhida para assegurar algo de mais fundamental do que ele próprio: a sua bandeira é a da democracia e ele é o modo instrumental de a garantir. Pouca virtude existirá em preservar um modelo, ainda que dito acusatório e revestido, por isso, de uma prévia pressuposição de legalidade, se ele comportar elementos susceptíveis de ferir o vínculo geral do sistema (o tal «princípio unificador»: a democraticidade), ainda quando esses elementos podem até não ser suficientes para negar, em termos técnicos, o carácter acusatório desse modelo. Não é o modelo acusatório enquanto tal que o sistema processual democrático tem que salvar, é a democraticidade que o rege.

A importância sistémica do «princípio unificador» é pois irrecusável. Tanto que «só se muda o sistema caso se mude o princípio unificador». Neste sentido, o princípio é mais do que o modelo, que não é senão a sua tradução orgânica. Encarada deste prisma, a eleição para princípio de um valor tão óbvio como «democraticidade» quer dizer, nem mais nem menos, a obrigatoriedade de manter sempre em aberto uma questão a formular a todo e qualquer mecanismo, ou elemento, ou prática seja de que tipo for, desde que actuante na esfera do sistema processual, e que é a seguinte: é este mecanismo, ou elemento, ou prática seja de que tipo for, compaginável com o cenário democrático-constitucional regente do próprio sistema em que se insere? É esta a questão que verdadeiramente interessa colocar em permanência. Pode talvez dizer-se que um modelo sistémico será tanto mais admissível quanto maior número de respostas positivas àquela questão receber. Mas o que pode sobretudo estabelecer-se é que a sua admissibilidade e eficácia dependem sobretudo da sua capacidade para (i) colocar permanentemente aquela pergunta, (ii) aceitar a eliminação de mecanismos, elementos ou práticas que, ainda que pertencentes ao património do modelo adoptado, passem negativamente o exame da democraticidade, e (iii) abdicar, se for caso disso, de ser modelo. Neste caso, o «princípio unificador» lá estará, como administrador da conectividade que ele é, para lhe colher as muitas dimensões virtuosas e articulá-las com outras de distinta proveniência, colocando-as agora ao serviço desse modelo efectivamente gerente que é o da democraticidade, tal como produzido pelo patamar político-constitucional. É desse patamar que é administrado o «princípio». Só dessa sede se pode então, verdadeiramente, produzir um modelo.

Eis que desembocamos, dito isto, numa interrogação estimulada pelo entendimento sistémico da realidade processual. Tem sido dito, e bem, que «o processo penal não é apenas o instrumento de composição do litígio mas, sobretudo, um instrumento político de participação, com maior ou menor intensidade, conforme evolua o nível de democratização da sociedade, afigurando-se para tanto imprescindível a coordenação entre direito, processo e democracia, o que ocorre pelo desejável caminho da Constituição». E tem sido dito, bem assim, que o marco constitucional se oferece doutrinariamente como limite às derivas processuais de fundo  autoritário, impondo um sistema processual que possa considerar-se ele mesmo um aparelho limite ao poder punitivo. Ora, assim sendo, que consequências poderão advir a cada um dos implicados nestas interacções («direito», «processo» e «democracia») pela eventual ocorrência de deslocamentos doutrinários ou funcionais no âmbito de cada um deles, ou no âmbito dos conceitos por eles trabalhados («limite»), ou, sobretudo, no âmbito desse elemento de máxima referencialidade que os articula («Constituição»)? Em bom raciocínio sistémico, só pode responder-se que, fatalmente, a turbulência de um invadirá sem remissão o campo do outro. Sem margem para dúvidas, o problema da verdade desemboca num outro, do qual ela participa: o das delimitações estruturantes do direito. Se a verdade é questão de mapeamento, é porque o direito também o é.”

 

Este texto corresponde a um trecho de um artigo do Professor Rui Cunha Martins, “O Mapeamento Processual da «Verdade», inserido na obra colectiva “Decisão Judicial – A cultura jurídica brasileira na transição para a democracia”, Geraldo Prado, Rui Cunha Martins e Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho, Monografias Jurídicas, Marcial Pons, 2012, págs. 79 a 82.

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