Alexandre Morais da Rosa e Salah H. Khaled Jr – “O Complexo de Münchhausen (no Juiz) e o Show do Direito”
“Não há como desligar a atividade de magistrados, promotores, defensores, delegados e policiais da respectiva posição subjetiva: quem acredita que é neutro, lamentamos, já faz parte da ideologia de alguém (e não sabe). Inexiste a neutralidade cantada em prosa e verso. A ilusão da neutralidade, todavia, desresponsabiliza aparentemente o sujeito. O exercício do poder estatal, em qualquer das suas funções, não pode se dar sem um lugar e uma responsabilidade pessoal daí decorrente. O sujeito que diz cumprir a lei e não se engaja é um alienado de sua dimensão colectiva.
Ferrajoli acode a essa percepção
sem que, todavia, tenha indicado um caminho convincente, pois seu apego à
semântica o impediu de efetuar o “giro linguístico”. De qualquer forma, alinhou
que dentre os limites da “verdade processual” está a impossibilidade de neutralidade
do órgão julgador dado que “por mais que se esforce para ser objetivo, está
sempre condicionado pelas circunstâncias ambientais nas quais atua, pelos seus
sentimentos, suas inclinações, suas emoções, seus valores ético-políticos. A
imagem proposta por Beccaria do juiz como ‘investigador imparcial do
verdadeiro’ é, sob este aspecto, fundamentalmente ingênua.” De fato, não se
pode pretender um juiz (ou qualquer outro ator) ‘pasteurizado de si mesmo’.
Essa imagem somente é possível com muito esforço ilusório e sedutor, valendo
invocar Lowy, em passagem singular: “Liberar-se por um esforço de
objetividade das pressuposições éticas, sociais ou políticas fundamentais de
seu próprio pensamento é uma façanha que faz pensar irresistivelmente na célebre
história do Barão de Münchhausen, ou este herói picaresco que consegue através
de um golpe genial, escapar ao pântano onde ele e seu cavalo estavam sendo
tragados, ao puxar a si próprio pelo cabelos… Os que pretendem ser sinceramente
seres objetivos são simplesmente aqueles nos quais as pressuposições estão mais
profundamente enraizadas. Para se liberar destes ‘preconceitos’ é necessário,
antes de tudo, reconhecê-los como tais: ora, a sua principal característica é
que eles não são considerados como tais, mas como verdades evidentes,
incontestáveis, indiscutíveis. Ou melhor, em geral eles não são sequer
formulados, e permanecem implícitos, subjacentes à investigação científica, às
vezes ocultos ao próprio pesquisador. […] Sua pretensão à neutralidade é às
vezes uma ilusão, às vezes um ocultamento deliberado, e, frequentemente, uma
mistura bastante complexa dos dois”. A difusão, pois, da neutralidade
inumana do ator social não passa de embuste, mito, capaz de funcionar
como aplacador da dimensão política do jurídico, deixando-o alienado tal qual
Truman Burbank, protagonista da película “O Show da Vida” (The Truman Show), na
qual sua existência era artificial, um programa de TV manipulado, em que vivia
num cenário perfeito, linear e falso. Sua família, sua casa, seu cotidiano,
seus sentimentos, sua situação no mundo, as coordenadas simbólicas, nada era,
enfim, verdadeiro. O ator jurídico neutro encontra-se nesse cenário de
plena felicidade por acreditar que está levando sua própria vida e aplicando a
lei pura, talvez precisando de uma voz (acorda!), como se deu no filme, para
avisar aos incautos, que o cenário onde se desenrola a ação não é falso, mas,
sublinhe-se, totalmente controlado e manipulado. Existem sempre
interesses (não ditos) que mexem as cordinhas, e quanto menos eles aparecem,
quanto menos se sabe deles, melhor é a dominação. Truman Burbank acreditava
viver sua realidade, os juízes também; e como costuma-se dizer: qualquer
semelhança com a realidade é mera coincidência. No filme a porta se abriu, o mundo
apareceu, e no universo jurídico é preciso arromba-la para que se possa sair
desse efeito vertigem”.
O ator jurídico possui uma carga
ideológica inafastável e o senso comum teórico só-nega. Zizek destaca
bem: “Eles não sabem o que fazem”, e, que o lugar apropriado para a
difusão da ilusão é na própria realidade, no efetivo processo social, no qual “a
lei é a Lei”. A pretensão formal de Kelsen na aplicação do Direito não
salva mais, uma vez que como pontua Marques Neto: “No pensamento Kelseniano,
por exemplo, ele supõe, de um lado, que o sujeito pode ser neutro e, de outro,
que a linguagem pode ser pura. Ora, aí faz o quê? Limito-me a aplicar a lei até
no sentido mais literal possível, mas a lei não é neutra, a lei é ela própria
uma escolha entre várias. Por que as leis são essas e não outras, por que elas
consagram esses valores e não outros? (…) A lei é um comando que nada tem de
neutro. Daí que, se o Juiz aplica neutramente a lei, que não é neutra, ele
também não é neutro. A própria lei contamina a neutralidade do juiz, o que não
quer dizer que o Juiz deve ignorar a lei.” A estrutura formal do crime, com
efeito, propicia que o raciocínio seja situado à margem do mundo da vida, com o
objetivo claro de naturalizar a aplicação de sanções. Assim, “obscurece o
caráter contingente das instituições jurídicas, enraizadas em transitórias
formas de organização social. Depois, este procedimento gera uma ilusão de
ahistoricidade em relação às mesmas instituições, enquanto as recobre com o
manto teórico-dogmático, invariável, atemporal, supostamente neutro.”
Precisamos ter em mente que a
sentença possui o potencial de produzir uma separação, pois pode esconder a
opacidade silenciosa do lugar de onde se produz o seu discurso, oculto pela
máscara da neutralidade e pelo suposto distanciamento em relação ao seu objeto,
através do emprego de um sacrossanto método. Trata-se, pura e simplesmente,
alguns diriam, de aplicar a letra fria da lei (ideologia de neutralidade), ou
então, de cumprir uma função epistêmica de busca da verdade (decisionismo de
combate ao inimigo, em nome da verdade real ou de sua versão relativa ou
aproximativa). Duas artimanhas discursivas que são rotineiramente conjugadas,
escondendo o lugar de fala de quem narra. Mas toda escrita sempre é produto de
um lugar existencial que está para além da razão cartesiana. Sua elaboração é
produto de um meio, que é circunscrito por determinações que lhe são próprias,
submetendo-a a imposições, ligada a privilégios, enraizada em uma particularidade,
que delimita a própria forma de seus métodos.
O juiz exerce seu ofício a partir
de um lugar de grande tensão: exerce poder, mas também é submetido ao poder: de
um lado, o poder das instâncias superiores, que esperam conformidade em relação
à sua orientação, efetivamente reduzindo o juiz singular ao papel de engrenagem
em uma máquina de confirmação de expectativas; de outro lado, a pressão social
exercida pela mídia e pela população estimulada por essa mesma mídia,
veiculadora de uma cultura punitivista de combate ao inimigo. Sua formação ou
(de)formação jurídica costuma ser a expressão de uma contínua e deliberada
busca de reprodução do mesmo: produz cegueira normativa. Não é por acaso que
acabamos tendo juízes dedicados à reprodução ideológica da barbárie discursiva
que é a exposição de motivos do CPP de 1941: foram nutridos por anos a fio com
ração programática. Eis aí o perigo da narrativa decisória conformar um veículo
arbitrário para o exercício do poder punitivo, mesmo que inconscientemente. O complexo
de Münchhausen se manifesta pela ausência de reflexão sobre os efeitos
das externalidades (positivas e negativas) de suas decisões, sob a máxima: “não
é problema meu; apenas aplico a lei”.
Quando isso ocorre, a sentença
acaba sendo muito mais o resultado complexo de um ilegítimo processo de
fabricação coletiva do que o produto de um juiz independente e ciente da
dimensão política de seu ofício. Simplesmente se subtrai dele a capacidade
plena de formação de sua convicção, de adquirir conhecimento a partir da
experiência prática, do confronto com o real: ao contrário, a prática se torna
um lugar de frustração e de reprodução ideológica da mesmidade das coisas. O lugar
exerce assim uma dupla função, de permissão e interdição, na medida em que
delimita o que pode e não pode ser dito. Nesse sentido, é importante vincular o
discurso a uma prática, sem a qual ele não pode fazer sentido. Com isso é
possível delimitar os efeitos que um discurso desfigurado promove na prática, e
assim tentar estabelecer uma prática que seja condizente com o discurso de
contenção do poder punitivo. Afinal, é o confronto entre a prática e o discurso
que pode permitir a percepção do quanto houve de desfiguração em relação ao que
o discurso se propunha a ser, pois embora esteja estruturado em torno do
princípio da independência do juiz, na prática ele assume outra dinâmica, que
ninguém – mesmo os defensores da verdade violenta e totalitária – admitiria abertamente
como apropriada ao lugar de produção da sentença. Entretanto, é o que ocorre na
realidade. É necessário romper com esse círculo viciosos.
Isso exige que o discurso da
independência do juiz seja realmente efetivado, sem que possa dizer o que
quiser sobre qualquer coisa (Lenio Streck). Para isso, é preciso romper com a tradição
inquisitória da verdade violenta e da persecução obsessiva ao inimigo e pensar
para além da reprodução ideológica da violência. Em comparação com os efeitos
provocados pela dinâmica da ambição de verdade, o discurso da verdade
problemática, do sistema acusatório, é um discurso apto a respeitar a
independência e favorecer a imparcialidade do juiz. Uma imparcialidade que é
entendida como atributo sistêmico, por exigência regrada que obstaculiza o
ativismo judicial da busca da verdade.
Precisamos aprofundar a discussão
sobre o que envolve a elaboração narrativa da sentença, a partir de seu lugar e
de sua prática: o juiz sempre será ser-no-mundo. Nesse sentido, é fundamental a
ideia de produção e fabricação, pois ela permite a percepção de que a verdade
em uma narrativa é menos aquilo que se manifesta aos olhos de forma correspondente,
do que aquilo que efetivamente se produz narrativamente (Khaled Jr, como também
José Calvo Gonzalez e André Karam Trindade).
Nesse sentido, a sentença é mais
do que a simples transcrição de fatos e dispositivos legais aplicáveis: é uma
fabricação sob a forma escriturária ou como já se disse: bricolagem. E o que é
pior de tudo, no seu modo inautêntico: ela é potencialmente uma arte de
discorrer argumentativamente que, exercida de forma insidiosa, procura eliminar
a diversidade em prol de um todo coerente, de uma credibilidade referencial
dada pelas decisões consolidadas das instâncias superiores, dos programas
oficiais e das supostas demandas punitivistas sociais. Dessa forma, a diferença
é abolida em duas dimensões, sendo que uma é consequência da outra: na liberdade
de pensamento do juiz e no momento em que ele narrativamente opera como um
confirmador de expectativas.
Diante disso, como refere Lopes
Jr, é preciso uma virada cultural, abandonando a arraigada lógica inquisitória,
pois aos juízes não cabe o papel de inquisidores, responsáveis pela “limpeza
social”, como muitos – até inconscientemente – pensam ser. Como refere o autor “lutem
contra essa “ambição de verdade”! Julguem com tranquilidade, com base na prova
produzida no processo, e absolvam sem culpa. Por outro lado, condenem, é claro,
quando a prova produzida no processo for plena, e disso estiverem realmente
convencidos”. Portanto, o juiz não deve fabricar a narrativa para
reproduzir o discurso monológico do inquérito policial, ou para mascarar a
ausência de núcleo probatório, permitindo a condenação; como observa Lopes Jr, “a
dúvida deve dar lugar a absolvição, não ao sofrimento. Quem não for capaz de
compreender isso, está no lugar errado, fazendo a coisa errada”.
Nesse sentido, tais juristas
devem ser despertos de um sono não perturbado pelos ruídos de uma fabricação
narrativa, por técnicas defasadas, por imposições sociais irrefletidas. Devem ser
arrancados deste ensurdecedor silêncio que parece ser o postulado dessa
epistemologia. Afinal, um saber não pode ser repensado somente através de
conceitos; é necessária também uma transformação prática, uma mudança no
próprio pensar que possibilite a reforma de um lugar que é, afinal, habitado e
moldado por pessoas.
Quando o juiz supõe que um
passado já dado se alinha e se desvenda em sua narrativa de forma
correspondente, ele equivocadamente não percebe que acima de tudo produz algo
novo quando escreve e isso deve ser compreendido urgentemente.
É preciso pensar em um modelo
narrativo apto a responder ao campo de questões que os eventos passados
suscitam e ao mesmo tempo reconhecer que todo o modelo tem limites: nunca se
chegará à tão sonhada verdade correspondente e atribuir ao juiz a função de busca-la
é um equívoco grosseiro. É necessário repensar certos procedimentos e romper
com a tradição sedimentada para torna-los mais qualificados, ou estaremos
perpetuamente condenados a sucumbir ao dogmatismo, no sentido mais triste e
conservador do termo.
Temos que reconhecer que sentença
sempre será uma fabricação não correspondente ao passado e procurar sujeitá-la
ao máximo nível de controle para subverter as possibilidades de que ela assuma
conformação de mera fabricação narrativa desvinculada de um núcleo probatório. Não
conseguimos visualizar como a concessão de poderes para que o juiz busque a
verdade favoreça essa pretensão de controle; pelo contrário, temos a impressão
de que ela potencializa a formação de uma fabricação narrativa de caráter
monológico, que argumentativamente é a expressão de uma violência.
Por isso é importante perceber-se
que a sentença é simultaneamente, presença e ausência: de um lado, expressa uma
situação vivenciada, um lugar de fala de onde se escreve; de outro lado expressa
uma imagem daquilo que falta: o passado que deseja representar. Por isso
inevitavelmente a verdade terá que no máximo ser tida como analogicamente
produzida sob a forma narrativa.
Jacinto Nelson de Miranda
Coutinho destaca que “[…] se há uma tentativa de fazer prevalecer o imaginário
contra a cultura democrática, pelo menos dois caminhos se apresentam para
marcar um lugar aceitável: 1º, não se iludir com o “canto da sereia” e, assim,
não se permitir ser guiado pelo imaginário sedutor, pelas respostas fáceis que
sacrificam os direitos e garantias fundamentais do cidadão em homenagem a uma
ideologia repressivista; 2º, manter a resistência contra qualquer tipo de
desvio nessa direção, de modo a que saibam todos que se não pode fazer o que
quiser, principalmente contra a Constituição”.
O juiz que sofre de Complexo de Münchhausen
definitivamente está no lugar errado, fazendo a coisa errada. Não seria exagero
se referir a isso como uma “função de falsificação”: a sentença acaba sendo por
excelência o rebento de uma violência. E o Show da Vida continua. Até
quando?”
Este texto integra a obra “In
Dubio Pro Hell 1 – Profanando o Sistema Penal”, Alexandre Morais da Rosa e
Salah H. Khaled Jr, 4.ª Edição revista e ampliada – Florianópolis, EMais
Editora, 2020, “O Complexo de Münchhausen (no Juiz) e o Show do Direito”, págs.
43 a 50.
Alexandre Morais da Rosa – Juiz
de Direito (TJSC), Doutor em Direito (UFPR) e Professor Universitário
(UNIVALI-SC e UFSC).
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