Daniel Kahneman, Olivier Sibony e Cass R. Sunstein – “Sequenciar informações nas ciências forenses”

 

“Em Março de 2004, várias bombas colocadas em comboios urbanos mataram 192 pessoas e feriram mais de 2000 em Madrid. Uma impressão digital encontrada num saco de plástico no local do crime foi transmitida via Interpol para agências de segurança do mundo inteiro. Alguns dias mais tarde, o laboratório criminal do Federal Bureau of Investigation (FBI) dos Estados Unidos identificou de forma conclusiva a impressão digital como pertencendo a Brandon Mayfield, um cidadão americano que vivia no Oregon.

Mayfield parecia um suspeito plausível. Antigo oficial do Exército norte-americano, casara-se com uma egípcia e convertera-se ao Islão. Enquanto advogado, tinha representado homens acusados (e mais tarde condenados) por tentativa de viajarem para o Afeganistão para se juntarem aos Talibãs. Estava na lista de vigilância do FBI.

Mayfield foi vigiado e a sua casa foi revistada e colocada sob escuta, bem como os seus telefones. Apesar de este escrutínio não ter produzido qualquer informação relevante, o FBI prendeu-o. Porém, Mayfield nunca foi formalmente acusado, porque não saía do país há uma década. Enquanto ele estava preso, os investigadores espanhóis, que já tinham informado o FBI de que consideravam que a impressão digital encontrada no saco plástico não pertencia a Mayfield, fizeram corresponder aquela impressão digital a outro suspeito.

Mayfield foi libertado passadas duas semanas. Mais tarde, o Governo norte-americano pediu-lhe desculpa, pagou-lhe uma indemnização de dois milhões de dólares e ordenou uma exaustiva investigação às causas do engano. A descoberta fundamental: «Foi um erro humano, e não uma falha de metodologia ou de tecnologia.»

Felizmente, erros desta natureza são raros. Não obstante, são instrutivos. Como puderam os melhores técnicos de impressões digitais dos estados Unidos identificar por engano uma impressão digital como pertencente a um homem que nunca se tinha aproximado do local do crime? Para o descobrir, necessitamos em primeiro lugar de compreender como funciona o exame de impressões digitais e como se relaciona com outros exemplos de juízo profissional. Veremos que a análise forense de impressões digitais, que tendemos a considerar uma ciência exacta, está na verdade sujeita aos enviesamentos emocionais dos técnicos. Estes enviesamentos podem criar mais ruído e, assim, mais erro do que imaginamos. E veremos como a comunidade das ciências forenses está a tomar medidas para resolver este problema implementando uma estratégia de higiene de decisão que pode aplicar-se a todos os ambientes: um controlo apertado do fluxo de informações usado para formular juízos.

 

Impressões digitais

As impressões digitais são as marcas deixadas pelas estrias de fricção dos nossos dedos nas superfícies em que tocamos. Embora haja exemplos da utilização de impressões digitais como aparentes marcas identificativas na Antiguidade, a ciência moderna das impressões digitais remonta ao fim do século XIX, quando Henry Faulds, um médico escocês, publicou o primeiro artigo científico a sugerir a utilização de impressões digitais como uma técnica de identificação.

Décadas mais tarde, as impressões digitais ganharam forma como marcas de identificação em cadastros criminais, substituindo a pouco e pouco as técnicas de medição antropométrica desenvolvidas por Alphonse Bertillon, um polícia francês. Em 1912, o  próprio Bertillon codificou um sistema formal para comparação de impressões digitais. Sir Francis Galton, com quem já nos cruzámos como o criador da sabedoria das multidões, desenvolveu um sistema semelhante em Inglaterra. (No entanto, não admira que estes fundadores raramente sejam celebrados. Galton acreditava que as impressões digitais seriam uma ferramenta útil para classificar indivíduos por raça, e Bertillon, provavelmente devido ao preconceito anti-semítico, apresentou um testemunho decisivo – e imperfeito – como especialista durante os julgamentos de Alfred Dreyfus em 1894 e 1899).

A polícia depressa descobriu que as impressões digitais podiam ser mais que marcas identificativas para criminosos reincidentes. Em 1892, Juan Vucetich, um polícia na Argentina, foi o primeiro a comparar uma impressão digital latente deixada no local de um crime pelo polegar de um suspeito. Desde então, a prática de colher impressões latentes (deixadas pelo seu dono no local de um crime) e compará-las com impressões exemplares (as que são colhidas em condições controladas a indivíduos conhecidos) tem sido a aplicação mais decisiva da análise de impressões digitais e é a forma mais vastamente usada de provas forenses.

Se alguma vez viu um leitor electrónico de impressões digitais (como os que são usados pelos serviços de imigração em muitos países), é provável que pense que a comparação de impressões digitais é uma tarefa simples, mecânica e facilmente automatizada. Todavia, comparar uma impressão digital latente colhida num local de crime com uma impressão digital exemplar é um exercício muito mais delicado que fazer a correspondência entre as duas impressões digitais nítidas. Quando pressiona com firmeza os dedos num leitor concebido especificamente para registar uma impressão digital, produz uma imagem clara e padronizada. Em contraste, as impressões digitais latentes são muitas vezes parciais, estão manchadas ou distorcidas de alguma outra forma; não disponibilizam a mesma quantidade e qualidade de informações que uma impressão digital colhida num ambiente controlado e especializado. As impressões digitais latentes estão muitas vezes parcialmente cobertas por outras, da mesma pessoa ou de pessoas diferentes, e incluem pó e outras partículas presentes na superfície. É preciso um juízo especializado para decidir se correspondem às impressões digitais exemplares de um suspeito. Essa tarefa está a cargo de técnicos humanos de análise de impressões digitais.

Quando lhes é apresentada uma impressão digital latente, os técnicos costumam seguir um processo chamado ACE-V, o acrónimo de análise, comparação, estimativa e verificação. Primeiro, têm de analisar a impressão digital latente para determinar se possui qualidade suficiente para comparação. Em caso afirmativo, comparam-na com uma impressão digital exemplar. A comparação resulta numa estimativa que pode produzir uma identificação (as impressões digitais pertencem à mesma pessoa), uma exclusão (as impressões digitais não pertencem à mesma pessoa) ou uma decisão inconclusiva. Uma decisão de identificação desencadeia o quarto passo: verificação por outro técnico.

Durante décadas, a fiabilidade deste procedimento manteve-se incontestada. Se bem que as testemunhas oculares se revelem perigosamente pouco fiáveis e até as confissões possam ser falsas, as impressões digitais foram aceites – pelo menos até ao advento da análise de ADN – como a forma mais credível de prova. Até 2002, as provas de impressões digitais nunca foram contestadas com sucesso num tribunal norte-americano. Por exemplo, à época, esta afirmação no website do FBI era irredutível: «As impressões digitais oferecem um meio infalível de identificação pessoal.» Nos casos muito raros em que havia erros, eram imputados a incompetência ou fraude.

As provas baseadas em impressões digitais mantiveram-se incontestadas durante tanto tempo em parte devido à dificuldade de provar que estão erradas. O verdadeiro valor de um conjunto de impressões digitais, isto é, a verdade básica de quem cometeu o crime, é muitas vezes desconhecido. No caso de Mayfield e em alguns outros casos semelhantes, o erro foi especialmente flagrante. Porém, em geral, se um suspeito contestar as conclusões do técnico, a prova das impressões digitais será, é claro, considerada mais fiável.

Referimos que não conhecer o verdadeiro valor não é invulgar nem um impedimento para medir o ruído. Quanto ruído existe na análise de impressões digitais? Ou, mais precisamente, dado que os técnicos de impressões digitais, ao contrário dos juízes que proferem sentenças e dos técnicos de seguros, não produzem um número, mas fazem um juízo categórico, quantas vezes estão em desacordo, e porquê? Itiel Dror, um investigador na área da neurociência cognitiva do University College em Londres, foi o primeiro a debruçar-se sobre esta questão. Ele realizou uma série de auditorias de ruído numa área que tinha presumido que não apresentava um problema de ruído.

 

Ruído ocasional na análise de impressões digitais

Pode parecer estranho um cientista cognitivo – um psicólogo – contestar técnicos de impressões digitais. Afinal de contas, como poderá ter visto em séries de investigação na televisão como CSI: Crime Sob Investigação e noutras séries de investigação criminal semelhantes, são tipos muito científicos que usam luvas de látex e manuseiam microscópicos. No entanto, Dror percebeu que a análise de impressões digitais era sem dúvida uma questão de juízo. E, enquanto neurocientista cognitivo, pensou que onde há juízo tem de haver ruído.

Para testar esta hipótese, Dror centrou-se em primeiro lugar no juízo ocasional: a variabilidade entre os juízos dos mesmos técnicos ao analisarem duas vezes os mesmos elementos de prova. Como diz Dror: «Se os especialistas não forem fiáveis no sentido de que não são consistentes consigo mesmos, então a base dos seus juízos e do seu profissionalismo é posta em causa.»

As impressões digitais proporcionam uma plataforma de teste perfeita para uma auditoria de ruído ocasional, porque, ao contrário dos casos com que um médico ou um juiz se deparam, os pares de impressões digitais não são facilmente memoráveis. É evidente que se deve deixar passar um intervalo de tempo adequado para garantir que os técnicos não se recordam das impressões digitais. (Nos estudos de Dror, alguns corajosos e tolerantes técnicos concordaram que, em qualquer momento nos próximos cinco anos, participariam em estudos, sem o seu conhecimento.) Além disso, a experiência tem de ocorrer durante o trabalho rotineiro dos técnicos, para que não percebam que as suas aptidões estão a ser testadas. Se, nessas circunstâncias, os juízos dos técnicos mudarem de uma análise para a outra, estamos na presença de ruído ocasional.

 

O enviesamento de confirmação forense

Em dois dos seus estudos originais, Dror acrescentou uma importante reviravolta. Ao verem as impressões digitais pela segunda vez, alguns dos técnicos foram expostos a mais informações tendenciosas sobre o caso. Por exemplo, aos técnicos de impressões digitais que tinham considerado que as impressões coincidiam foi então dito que «o suspeito tem um álibi» ou que «os elementos de prova das armas de fogo sugerem que não é ele». Outros, que tinham começado por concluir que um suspeito era inocente, ou que as impressões digitais eram inconclusivas, ficaram a saber da segunda vez que «o detective acredita que o suspeito é culpado», «testemunhas oculares identificaram-no» ou «ele confessou o criem». Dror considerou esta experiência um teste à «enviesabilidade» dos especialistas, porque a informação contextual fornecida activou um enviesamento emocional (um enviesamento de confirmação) numa dada direcção.

De facto, os técnicos revelaram-se susceptíveis a enviesamento. Quando os mesmos técnicos consideraram as impressões digitais que tinham visto antes, mas desta vez com informações tendenciosas, os seus juízos mudaram. No primeiro estudo, quatro em cada cinco técnicos alteraram a decisão de identificação anterior quando lhe foram apresentadas convincentes informações contextuais que sugeriam uma exclusão. No segundo estudo, seis especialistas analisaram quatro pares de impressões digitais; informações tendenciosas levaram a mudanças em quatro das 24 decisões. É claro que a maioria das decisões não mudou, mas neste tipo de decisões uma mudança de um em seis pode ser considerada grande. Desde então, estas descobertas foram replicadas por outros investigadores.

Previsivelmente, era mais provável que os técnicos mudassem de ideia quando a decisão era difícil, quando as informações tendenciosas eram fortes e quando a mudança era de uma decisão conclusiva para uma decisão inconclusiva. Não obstante, é perturbador que «os técnicos de impressões digitais tenham tomado decisões com base no contexto, não com base nas informações concretas contidas na impressão digital».

O efeito das informações tendenciosas não está limitado à conclusão do técnico (identificação, inconclusivo ou exclusão). As informações tendenciosas mudam o que o técnico observa e também mudam como essa percepção é interpretada. Num estudo diferente, Dror e os colegas mostraram que os técnicos que foram colocados num contexto tendencioso não vêem, literalmente, as mesmas coisas que os que não foram expostos a informações com enviesamento. Quando a impressão digital latente é acompanhada por uma impressão digital exemplar para comparação, os especialistas observam muito menos pormenores (chamados minúcias) do que quando vêem apenas a impressão digital latente. Um estudo independente posterior confirmou esta conclusão e acrescentou que «não é óbvio como ocorre».

Dror criou um termo para o impacto de informações tendenciosas: o enviesamento da confirmação forense. Desde então, este enviesamento foi documentado noutras técnicas forenses, incluindo análises de perfil sanguíneo, investigação de fogo posto, análise de esqueletos e patologia forense. Até a análise de ADN – vastamente considerada o novo padrão-ouro das ciências forenses – pode ser susceptível de enviesamento de confirmação, pelo menos quando os especialistas têm de avaliar complexas misturas de ADN.

A susceptibilidade dos especialistas forenses ao enviesamento de confirmação não é apenas uma preocupação teórica, porque, na realidade, não estão implementadas precauções sistemáticas para garantir que os especialistas forenses não são expostos a informações tendenciosas. Os técnicos recebem frequentemente essas informações nas cartas de transmissão que acompanham os elementos de prova que lhes são apresentados. Muitas vezes, os especialistas também estão em comunicação directa com a polícia, com advogados de acusação e com outros técnicos.

O enviesamento de confirmação suscita outro problema. Uma importante salvaguarda contra erros, incluída no procedimento ACE-V, é a verificação independente por outro especialista antes de uma identificação ser confirmada. Mas, na maioria das vezes, só as identificações são verificadas de forma independente. O resultado é um forte risco de enviesamento de confirmação, pois o técnico que efectua a verificação sabe que a conclusão inicial foi uma identificação. Assim, a etapa de verificação não proporciona o benefício que é normalmente esperado da agregação de juízos independentes, porque as verificações não são, de facto, independentes.

Uma cascata de enviesamentos de confirmação parece ter estado em acção no caso Mayfield, em que não dois, mas três técnicos do FBI concordaram com a identificação errónea. Como a investigação posterior do erro referiu, o primeiro técnico parece ter ficado impressionado com «o poder de correlação» do sistema automatizado de pesquisa de impressões digitais em bases de dados para uma possível correspondência. Embora, aparentemente, ele não tenha sido exposto aos pormenores biográficos de Mayfield, os resultados fornecidos pelo sistema informático  que efectuou a pesquisa inicial, «aliados à pressão inerente de trabalhar num caso extremamente importante», foram suficientes para produzir o enviesamento de confirmação inicial. Quando o primeiro técnico produziu uma identificação errónea, continua o relatório, «os exames posteriores estavam contaminados». Como o primeiro técnico era um supervisor muitíssimo respeitado, «tornou-se cada vez mais difícil para os outros técnicos discordarem». O erro inicial foi repetido e ampliado, resultando na certeza de que Mayfield era culpado. Significativamente, até um especialista externo muito respeitado, nomeado pelo tribunal para analisar os elementos de prova para a defesa de Mayfield, concordou com o FBI ao corroborar a identificação.

O mesmo fenómeno pode ocorrer noutras disciplinas forenses e transversalmente. A identificação de impressões digitais latentes é considerada uma das disciplinas forenses mais objectivas. Se os técnicos de impressões digitais podem ser parciais, o mesmo acontece com especialistas noutras áreas. Além disso, se um especialista em armas de fogo souber que as impressões digitais correspondem, este conhecimento também poderá influenciar a sua decisão. E se um odontologista forense souber que a análise de ADN identificou um suspeito, é menos provável que sugira que as marcas da dentada não correspondam ao suspeito. Estes exemplos elevam o espectro das cascatas de enviesamento: como nas decisões de grupo que descrevemos no capítulo 8, um erro inicial causado por enviesamento de confirmação trona-se a informação parcial que influencia um segundo especialista, cujo juízo influencia um terceiro, e assim sucessivamente.

Depois de estabelecer que as informações enviesadas criam variabilidade, Dror e os seus colegas desvendaram mais indícios de ruído ocasional. Mesmo quando os técnicos de impressões digitais não são expostos a informações  com enviesamento, por vezes mudam de ideias sobre um conjunto de impressões digitais que já viram. Como seria expectável, as mudanças são menos frequentes quando não são fornecidas informações tendenciosas, mas ainda assim acontecem. Um estudo de 2012 encomendado pelo FBI replicou esta descoberta em maior escala ao pedir a 72 técnicos que analisassem de novo 25 pares de impressões digitais que tinham avaliado cerca de sete meses antes. Com uma grande amostra de especialistas extremamente qualificados, o estudo confirmou que por vezes os técnicos de impressões digitais são susceptíveis a ruído ocasional. Cerca de uma em cada dez decisões foi alterada. A maioria das alterações foi a favor ou inconclusiva e nenhuma resultou em identificações falsas. A sugestão mais perturbadora do estudo é que algumas identificações de impressões digitais que estiveram na origem de condenações podiam, potencialmente, ser consideradas inconclusivas noutra altura. Quando os mesmos técnicos olham para as mesmas impressões digitais, apesar de o contexto não ter sido concebido para os baralhar, mas para serem tão constantes quanto possível, há inconsistência nas suas decisões.

 

Algum ruído, mas quanto erro?

A questão prática suscitada por estas descobertas é a possibilidade de erros judiciários. Não podemos ignorar questões sobre a fiabilidade de especialistas que testemunham em tribunal: validade requer fiabilidade, porque, muito simplesmente, é difícil concordar com a realidade se não conseguir concordar consigo mesmo.

Quantos erros, ao certo, são provocados por ciências forenses defeituosas? Uma análise de 350 exonerações obtidas pela Innocence Project, uma organização sem fins lucrativos que trabalha para anular condenações injustas, conclui que o mau uso das ciências forenses foi uma causa que teve influência em 45% dos casos. Esta estatística parece má, mas a questão que importa para os juízes e para os jurados é diferente: para saberem até que ponto podem confiar no especialista que está a testemunhar, necessitam de saber qual é a probabilidade de os cientistas forenses, incluindo técnicos de impressões digitais, cometerem erros significativos.

O conjunto mais robusto de respostas a esta pergunta pode ser encontrado num relatório da President´s Council of Advisores on Science and Technology (PCAST), um grupo consultivo composto pelos mais conceituados cientistas e engenheiros dos Estados Unidos, que em 2016 produziu uma análise aprofundada das ciências forenses nos tribunais criminais. O relatório resume os elementos de prova disponíveis sobre a validade de análises de impressões digitais e, especialmente, sobre a probabilidade de identificações erróneas (falsos positivos) como a que envolveu Mayfield.

Estes elementos de prova são surpreendentemente escassos e, como o relatório da PCAST refere, é «preocupante» que só recentemente tenham começado a ser tomadas medidas para que sejam produzidos. Os dados mais credíveis provêm do único estudo em grande escala publicado sobre precisão de identificação de impressões digitais, que foi conduzido por cientistas do FBI em 2011. O estudo envolveu 169 técnicos, cada um dos quais comparou cerca de 100 pares de impressões digitais latentes e exemplares. A sua descoberta principal foi que ocorreram muito poucas identificações erróneas: a taxa de falsos positivos foi de, aproximadamente, um em 600.

Uma taxa de erro de um em 600 é baixa, mas, como referiu o relatório, é «muito mais alta do que o público em geral (e, por arrastamento, a maioria dos jurados) acreditaria com base em reivindicações de longa data sobre a precisão da análise de impressões digitais». Além disso, este estudo mão continha informações contextuais tendenciosas e os técnicos que se voluntariaram sabiam que estavam a participar num teste – o que pode ter levado o estudo a subestimar os erros que ocorrem em casos reais. Um estudo posterior realizado na Florida chegou a números muito mais altos de falsos positivos. As diferentes descobertas na literatura sugerem que necessitamos de mais estudos sobre a precisão das impressões digitais e sobre como essas decisões são alcançadas.

Porém, uma tranquilizadora descoberta que não se mostra consistente em todos os estudos é que os técnicos parecem errar por demasiada cautela. A sua precisão não é perfeita, mas eles estão conscientes das consequências dos seus juízos e têm em conta o custo assimétrico de possíveis erros. Devido à credibilidade muito elevada da análise de impressões digitais, uma identificação errónea pode ter efeitos trágicos. Outra espécie de erro é menos significativa. Por exemplo, como observam os especialistas do FBI, «na maioria dos casos, uma exclusão tem as mesmas implicações operacionais que um veredicto de inconclusivo». Dito de outra forma, o facto de uma impressão digital ser encontrada na arma do crime é suficiente para condenar, mas a ausência dessa impressão digital não é suficiente para exonerar um suspeito.

Consistentemente com a nossa observação da cautela dos técnicos, os indícios sugerem que eles pensam duas vezes – ou muito mais que duas vezes – antes de tomarem uma decisão no sentido de produzirem uma identificação. No estudo do FBI sobre precisão de identificação, menos de um terço dos pares «com correspondência» (em que a impressão digital latente e exemplar pertencem à mesma pessoa) foram julgados (com precisão) como positivos. Os técnicos também fazem muito menos identificações falso-positivas que exclusões falso-negativas. São susceptíveis ao enviesamento, mas não de forma igual nas duas direcções. Como Dror refere: «É mais fácil influenciar técnicos forenses para tomarem conclusões prudentes de “inconclusivo” que para a conclusão de “identificação” definitiva.»

Os técnicos são treinados para considerar a identificação errónea como um pecado mortal que deve ser evitado a todo o custo. E têm o mérito e agir de acordo com este princípio. Só podemos esperar que o seu nível de cuidado evite identificações erróneas como as que aconteceram no caso Mayfield e num punhado de outros casos importantes, extremamente raros.

 

Escutar o ruído

Observar que existe ruído nas ciências forenses não deve ser visto como uma crítica aos cientistas forenses. É uma simples consequência da observação que fizemos repetidamente: onde há juízo há ruído, e mais do que pensa. Uma tarefa como a análise de impressões digitais parece objectiva, a tal ponto que muitas pessoas não a consideram uma forma de juízo. No entanto, deixa espaço para a inconsistência, a discordância e, de vez em quando, o erro. Por muito baixa que seja a taxa de erro na identificação de impressões digitais, não é zero e, como a PCAST referiu, os júris têm de ter consciência disso.

É evidente que o primeiro passo para reduzir o ruído tem de ser o reconhecimento da sua possibilidade. Esta admissão não surge de forma natural para os membros da comunidade da análise de impressões digitais, muitos dos quais estavam num primeiro momento muito cépticos em relação à auditoria de ruído de Dror. A noção de que um técnico pode ser involuntariamente influenciado por informações sobre o caso irritou muitos especialistas. Numa resposta ao estudo de Dror, o presidente da Fingerprint Society escreveu que «qualquer técnico de impressões digitais que (…) seja influenciado para os dois lados nesse processo de decisão (…) é tão imaturo que ele/ela devia procurar emprego na Disneylândia». Um director de um grande laboratório forense referiu que ter acesso a informações sobre o caso – precisamente o tipo de informações que podem influenciar o técnico – «proporciona alguma satisfação pessoal que permite [ao técnico] desfrutar do seu trabalho sem alterar o seu juízo». Até o FBI, na sua investigação interna do caso Mayfield, mencionou que «é rotineiro os técnicos de impressões digitais latentes realizarem verificações sobre as quais conhecem os resultados de técnicos anteriores e, no entanto, esses resultados não influenciam as suas conclusões». Na essência, estes comentários representam uma negação da existência do enviesamento de confirmação.

Mesmo quando estão conscientes do risco de enviesamento, os cientistas forenses não estão imunes ao enviesamento do ângulo morto: a tendência para reconhecer a presença de enviesamento noutras pessoas, mas não em si mesmos. Num inquérito realizado a 400 profissionais de ciências forenses em 21 países, 71% concordaram que »o enviesamento cognitivo é um motivo de preocupação nas ciências forenses como um todo», mas apenas 26& pensavam que os seus «juízos são influenciados por enviesamento cognitivo». Dito de outra forma, cerca de metade desses profissionais forenses acreditam que os juízos dos seus colegas são ruidosos, mas que os seus não são. O ruído pode ser um problema invisível, mesmo para pessoas cujo trabalho é ver o invisível.

 

Sequenciar informações

Graças à persistência de Dror e dos seus colegas, as atitudes começam a mudar a pouco e pouco e um número crescente de laboratórios forenses começou a tomar novas medidas para reduzir o erro nas suas análises. Por exemplo, o relatório da PCAST elogiou o laboratório do FBI por reformular os seus procedimentos no sentido de minimizar o risco de enviesamento de confirmação.

Os necessários passos metodológicos são relativamente simples. Ilustram uma estratégia de higiene de decisão que tem aplicabilidade em muitas área: sequenciar informações para limitar a formação de uma intuição prematura. Em qualquer juízo, algumas informações são relevantes, e outras não. Mais informação nem sempre é melhor, mas sobretudo se tiver o potencial de influenciar juízos ao levar o juiz a formar uma intuição prematura.

Nesse espírito, os novos procedimentos implementados nos laboratórios forenses têm como propósito proteger a independência dos juízos dos técnicos ao transmitirem-lhes apenas informações de que eles necessitam, quando necessitam. Dito de outra forma, o laboratório mantém-nos às escuras sobre o caso e só revela as informações a pouco e pouco. Para fazer isso, a abordagem que Dror e os seus colegas codificaram recebeu o nome de revelação sequencial linear.

Dror tem outra recomendação que ilustra a mesma estratégia de higiene de decisão: os especialistas devem documentar os seus juízos a cada passo. Devem documentar a sua análise de uma impressão digital latente antes de observarem impressões digitais exemplares para decidirem se correspondem. Esta sequência de passos ajuda os técnicos a evitarem o risco de só verem o que procuram. E devem registar o seu juízo com base na prova antes de terem acesso a informação contextual que os coloque em risco de serem influenciados. Se mudarem de ideias depois de estarem expostos a informações contextuais, essas mudanças, e a fundamentação lógica para elas, devem ser documentadas. Este requisito limita o risco de todo o processo ser influenciado por uma intuição precoce.

A mesma lógica inspira uma terceira recomendação, que é uma parte importante da higiene de decisão. Quando um técnico diferente é chamado para verificar a identificação efectuada pela primeira pessoa, a segunda pessoa não deve estar consciente do primeiro juízo.

É claro que a presença de ruído nas ciências forenses é um motivo de preocupação devido às suas potenciais consequências de vida ou morte. No entanto, também é reveladora. O facto de termos passado tanto tempo completamente alheados da possibilidade de erro na identificação de impressões digitais mostra como a nossa confiança no juízo profissional especializado pode ser por vezes exagerada e como é possível uma auditoria de ruído revelar uma quantidade inesperada de ruído. A capacidade de mitigar estas falhas através de alterações relativamente simples ao processo deve ser encorajadora para todas as pessoas que se preocupam em melhorar a qualidade das decisões.

A principal estratégia de higiene de decisão que este caso ilustra – sequenciação de informação – tem uma vasta aplicabilidade como salvaguarda contra o ruído ocasional. Como referimos, o ruído ocasional é desencadeado por incontáveis impulsionadores, incluindo o estado de espírito e até as condições atmosféricas. Não pode esperar controlar todos estes impulsionadores, mas deve tentar proteger os juízos dos mais óbvios. Já sabe, por exemplo, que os juízos podem ser alterados pela fúria, o medo ou outras emoções, e talvez tenha reparado que é uma boa prática, se for possível, revisitar o seu juízo em diferentes momentos no tempo, quando é provável que os impulsionadores de ruído ocasional sejam diferentes.

Menos óbvia é a possibilidade de o seu juízo ser alterado por outra impulsionador de ruído ocasional: informação – mesmo quando se trata de informação precisa. Como no exemplo do exame de impressões digitais, logo que sabe o que outros pensam, o enviesamento de confirmação pode levá-lo a formar uma impressão global demasiado cedo e a ignorar informações contraditórias. Os títulos de dois filmes de Hitchcock resumem esta ideia: um bom decisor tem de manter «a sombra de uma dúvida», não pode ser «o homem que sabia demais».

 

A propósito da sequenciação de informações

«Sempre que há juízo, há ruído – e isso inclui a leitura de impressões digitais.»

«Temos mais informações acerca deste caso, mas não vamos dizer aos especialistas tudo o que sabemos antes que eles formulem o seu juízo, para não os influenciar. De facto, vamos dizer-lhes apenas o que têm mesmo de saber.»

«A segunda opinião não é independente se a pessoa que a dá souber qual foi a primeira opinião. E a terceira é menos ainda: pode haver uma cascata de enviesamento.»

«Para combater o ruído, primeiro há que admitir a sua existência.»”

 

Este texto integra a obra “Ruído – Porque tomamos más decisões e como podemos evitá-lo”, de Daniel Kahneman, Olivier Sibony e Cass R. Sunstein, 1.ª Edição, Novembro 2021, Objectiva – Penguin Random House Grupo Editorial, Capítulo 20, “Sequenciar informações nas ciências forenses”, págs. 299 a 315.

 

Daniel Kahneman – Em 2002 recebeu o Prémio Nobel da Economia por uma investigação pioneira na área da psicologia (o prémio atribuído em Economia denomina-se Prémio do Banco da Suécia em Ciências Económicas em Memória de Alfred Nobel – foi atribuído pela primeira vez em 1969), sobre o modelo racional que preside à tomada de decisões, trabalho que teve um impacto profundo em campos como a economia, a Medicina, ou a Política. Foi professor de Psicologia e de Relações Institucionais em Princeton. É o autor do aclamado Pensar, Depressa e Devagar. Faleceu em 27 de Março de 2024 com 90 anos.

 

Olivier Sibony – É professor de Estratégia Empresarial e Estratégia Corporativa na HEC Paris Business School. É escritor e consultor especializado em tomada de decisões estratégicas e organização de processo de decisão. Entre 1991 e 2015, foi sócio e director dos escritórios da Mckinsey & Company em Bruxelas, Paris e Nova Iorque. É autor do livro You´re About to Make a Terrible Mistake.

 

Cass R. Sunstein – É co-autor do bestseller internacional Nudge, um pequeno empurrão e The World According to Star Wars. É professor em Harvard, onde dirige o Programa de Economia Comportamental e Políticas Públicas. Entre 2009 e 2012, esteve à frente do gabinete para a Informação e Questões Regulamentares, na Casa Branca, e, entre 2013 e 2014, fez parte do Grupo de Estudo criado pelo presidente Barack Obama para Tecnologias da Informação e Comunicações. Em 2018, recebeu o Prémio Holberg do governo da Noruega, por vezes descrito como o equivalente ao Prémio Nobel do Direito e das Humanidades. Em 2020, a Organização Mundial da Saúde nomeou-o Presidente do seu grupo de consultoria técnica sobre Insights Comportamentais e Ciências para a Saúde.

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