Alexandre Morais da Rosa e Salah H. Khaled Jr "In Dubio Pro Hell: O Processo Penal do Inimigo"
“Decidir é uma tarefa complexa e
o cérebro, conforme Daniel Kahneman, por seus sistemas S1 (implícito,
rápido, automático, emotivo e sem esforço) e S2 (consciente, demorado,
racional, desgastante e lógico), busca reduzir a complexidade do mecanismo da
decisão. Embora os sistemas trabalhem em sequência, em face da demanda por
resultados e por punição, não raro, utilizam-se lugares comuns próprios do S1,
facilitando o processo de tomada de decisão. Entretanto, esse modo de pensar
leva muitas vezes a erros (vieses), dado que a reflexão não é convocada,
permanecendo no banco de reservas.
No campo do processo penal a
situação é agravada pelo modelo de aparência racional, elaborado como um dever
ser, desprezando-se orgulhosamente os fatores reais de decisão. Percebe-se
assim que o modelo de tomada de decisão e a capacidade e qualidade cognitiva,
bem como o tempo e informações disponíveis, podem alterar o resultado. É
preciso atentar para a formação de máximas da experiência, ou seja, das regras
de bolso com que os juristas operam. Ainda que úteis, em muitos casos, sem a
participação do S2, o piloto automático da resposta pronta toma o lugar da
racionalidade.
E a lógica sistemática do in
dubio pro reo, no caso da matriz inquisitória, passa a ser in dubio
pro hell.
Por isso a Psicologia Cognitiva
pode ser uma aliada, sem que se aposte todas as fichas nela. O modelo de
Kahneman acolhe a racionalidade da decisão, todavia, mitigada, ou seja, a
racionalidade depende do estoque de informações, da maneira como foi processada
e do impacto que isso representa diante dos fins da decisão. Julgar um processo
penal não é algo natural. Aprende-se artificialmente e, muitas vezes, de
maneira equivocada. É preciso mapear não só como os julgadores fazem o trabalho
de decisão, mas também como aprenderam a fazer e, também, as possibilidades de
adaptação.
A presunção de inocência como
regra de tratamento e premissa do estado de não culpabilidade no processo penal
é manipulada pelo viés de confirmação adotado pela ampla maioria dos
magistrados, a saber, partindo-se da presunção de veracidade da acusação, o
suporte de informações (provas) produzidas no decorrer do processo somente
serve, mesmo que não sejam suficientes, para confirmar o que já se havia
cristalizado. Franco Cordero denominava de primado da hipótese sobre os
fatos – posição Inquisitória e de um quadro mental paranoico,
o processo de tomada de decisão: o desenrolar processual passa a ser de
preenchimento dos significantes necessários ao projeto/acusação,
desprezando-se os demais, como um engenheiro que desconsidera o material em
desconformidade com o seu projeto. Descreve Cordero: “a solidão na qual os
inquisidores trabalham, jamais expostos ao contraditório, fora dos grilhões da
dialética, pode ser que ajude no trabalho policial, mas desenvolve quadros
mentais paranoicos. Chamemo-os ‘primado da hipótese sobre os fatos’: quem
investiga segue uma delas, às vezes com os olhos fechados; nada a garante mais
fundada em relação às alternativas possíveis, nem esse mister estimula,
cautelarmente, a autocrítica; assim como todas as cartas do jogo estão na sua
mão e é ele que as coloca sobre a mesa, aponta na direção da “sua” hipótese.
Sabemos com quais meios persuasivos conta […] usando-a, orienta o êxito para
onde quer.” Em suma, sob o ‘primado das hipóteses sobre os fatos’, conforme
aponta Cordero, “o que conta é o resultado.”
É nesse sentido que Salo de
Carvalho lembra que as regras do direito canônico impunham instrumentos de
gerenciamento, produção e valoração da prova que apenas ratificavam as
hipóteses acordadas. É por isso que o autor diz que “o processo inquisitivo
é infalível, visto ser o resultado previamente determinado pelo próprio juiz”.
Como destaca Cordero, o estilo inquisitório é caracterizado por máquinas que
operam com base no monólogo e em automatismos teoricamente perfeitos; nada é
deixado ao acaso; prevê tudo o que julga. Constituí-se assim uma “verdade” que
reproduz as convicções pessoasi do inquisidor, o qual extrai através da força a
confirmação pelo réu da hipótese que ele, o juiz, fabrica. Dessa forma, como
refere Coutinho, o juiz atua amparado na “[…] lógica dedutiva, que deixa ao
inquisidor a escolha da premissa maior, razão pela qual pode decidir antes e,
depois, buscar, quiçá obsessivamente, a prova necessária para justificar a
decisão.” Roxin reconheceu que a grande desvantagem do processo inquisitório
reside no fato de que a sobreposição de papéis resulta em uma sobre-exigência
psicológica: uma vez que ele próprio reuniu o material, não é mais imparcial
frente ao resultado da investigação como é indispensável para sentenciar.
Para a obra introspectiva
inquisitorial, não existem formas nem termos definidos; vale-se do tempo
necessário e de uma técnica flexível, improvisada em casos individuais, com
ausência de qualquer tensão dialética. O modelo processual da Inquisição
dispensa a cognição e critérios objetivo, gerando uma subjetivação do processo.
Que os inquisidores busquem sempre condenar e que a máquina processual opere
disposta para tal fim é demonstrativo de sua perversidade congênita. Logo,
percebe-se a natureza da “verdade” obtida pelo procedimento inquisitório, a
partir de instrumentos e conceitos inteiramente falaciosos, como aponta Lopes
Jr. Segundo Ferrajoli, o modelo assenta-se “[…] na busca da verdade
substancial, que por isso se configura como uma verdade máxima, perseguida sem
qualquer limite normativo aos meios de aquisição das provas ao mesmo tempo não
vinculada, mas discricionária, no mínimo porque a indeterminação das hipóteses
de acusação e o seu caráter avaliativo exigem, mais que provas, juízos de valor
não contestáveis pela defesa […] o fim (de atingir a verdade qualquer seja)
justifica os meios (os procedimentos quaisquer que sejam) […]”
Para Coutinho, “um sistema com
a referida estrutura, como parece elementar, tende a prevalecer no tempo,
embora passível de mudanças secundárias […] e continuará prevalecendo – até
porque sustenta o status quo e, portanto, serve a quem detém o poderem qualquer
regime […]”. Trata-se de um sistema dado por excelência ao comprometimento
das possibilidades do acusado resistir ao poder punitivo que se insinua sobre a
sua liberdade e, logo, perfeitamente adequado para regimes ditatoriais,
totalitários e antidemocráticos.
No que interessa à construção
deste escrito, não se busca discorrer sobre a história da Criminologia e
suas vertentes, mas se destacar como o ultrapassado discurso da Criminologia
Positiva se embrenhou no imaginário jurídico brasileiro e opera no ato
decisório, uma vez que o processo de secularização anunciado é mais
ilusório do que real. Passamos do herege para o homem delinquente e,
finalmente, para o inimigo a ser exterminado para a sobrevivência e bem-estar
do homem de bem. Os portadores do “bem” platônico se arvoram em combater
o crime: o mala in si, conforme pondera Cordero: “Nasce uma mística:
descobre e elimina heresias ou delitos, combate potências maléficas em uma
cruzada diária; é por mérito seu que o mundo não é devorado pelo demônio; se
fosse neutro, seria cúmplice do diabo; por fim, os escrúpulos são igualados à
covardia.” Dito de outra forma, o discurso velado mantém a missão de “adestrar
para o amor do Poder”, e a estrutura da divisão maniqueísta e Canônica
entre ‘bem X mal’. Mas, afinal, os Juízes estão ao lado do bem,
ou não?
De outra face, a força da mídia
promove, com objectivos comerciais e outros nem tanto, a vivacidade do
espetáculo “violência”, capaz de instalar a “cultura do pânico”, fomentador do
discurso de Defesa Social e combustível inflamável para aferrolhar o desalento
constitutivo do sujeito clivado com a “promessa de segurança”, enfim, de
realimentar os estereótipos do crime e criminoso mote dos
discursos de “Lei e Ordem”. Lembra Batista: “acreditar em bruxas
costuma ser a primeira condição de eficiência da justiça criminal, como os
inquisidores Kramer e Sprenger sabiam muito bem.” Aliás, o “Martelo das
Feiticeiras” de Kramer e Sprenger, manual de procedimento muito difundido
durante a Inquisição, por certo, serve de inspiração velada de muitas propostas
de reforma da legislação ou mesmo de práticas judiciais antigarantistas.
De sorte que a estrutura
paranoica, no Processo Penal, aparece sutilmente, eis que encoberta por recursos
retóricos ordenados, tanto na assunção de uma postura inquisitória na
gestão da prova, quanto na interpretação da conduta. Com efeito, na
instrução probatória tudo se refere a ele (juiz inquisidor), seja um olhar do
acusado, uma palavra ambígua da testemunha, um olhar perdido, tudo é tido como
algo que não aconteceu por acaso e refere-se a ele, e aí…. e aí….
condena-se, manejando-se recursos retóricos. Afinal, o juiz agindo por mandato
do outro, possui o poder formal de dizer a verdade no caso em
julgamento. Mesmo que seja um “neurótico”, “obsessivo”, “esquizofrênico” no
mundo da vida extrajurídica (se é que é possível), pelo menos nesses dois
momentos pode assumir uma postura paranoica, agravada se partidário de
movimentos de recrudescimento da repressão, como “Tolerância zero”, “Lei
e Ordem”.
Dentro de tais parâmetros, não
surpreende que prospere em grande parte dos juízes um imaginário de magistrado
como agente de segurança pública, como se fossem xerifes convocados para fazer
parte de táticas de combate à criminalidade. Afinal, o controle social faz
parte do arsenal de competências do Judiciário? Se a definição de lugares e
atribuições deve ser extraída da Constituição, certamente que não.
A Constituição brasileira
completará trinta anos em 2018. Para um país com pouca tradição democrática
como o Brasil, trata-se de uma data marcante, pois estamos historicamente
acostumados a testemunhar a ruptura autoritária da ordem política. No entanto,
não temos muito que comemorar: seu déficit de efetividade é claramente visível,
particularmente no que se refere ao âmbito das práticas punitivas. Os atores do
sistema penal permanecem propensos a violar direitos fundamentais e
flexibilizar garantias, deformando na prática a estrutura regrada do devido
processo legal e consagrando cada vez mais o decisionismo.
No que diz respeito ao universo
jurídico-penal, a Constituição representa uma abertura democrática em sede
processual, consagrando um sistema eminentemente acusatório. No entanto,
continua irrealizada sua promessa acusatória, uma vez que nosso sistema processual
penal ainda é animado por uma doentia ambição de verdade, que se recusa a
arrefecer. Em nome dessa insaciável busca, permanece imperando um processo
penal do inimigo, cujo sentido consiste na obtenção da condenação a qualquer
custo.
O fetiche pela legislação
infraconstitucional ainda seduz a imaginação persecutória de muitos
magistrados: nosso Código de Processo Penal (de 1941) é tido como livro
sagrado, continuamente apto a potencializar práticas visivelmente inquisitórias
e antidemocráticas. Nada parece impedir a continuidade de sua aplicação e muito
menos que diante da perspectiva de um novo código, os juízes se manifestam
temerosos com a possibilidade de retirada de poderes que lhes permitam buscar a
verdade real. Ainda temos que avançar e muito, pois permanecemos presos a um
núcleo de pensamento autoritário que é preciso urgentemente superar para
fortalecer a democracia.
O funcionamento do sistema penal
deve partir do necessário respeito ao princípio maior – a dignidade da pessoa
humana – em oposição à lógica persecutória que no passado organizou sistemas
voltados para a implacável persecução dos indesejáveis, tidos como inimigos. A
epistemologia inquisitória foi concebida para homogeneizar o corpo social,
matando a diferença, enquanto o nosso cenário democrático-constitucional impõe
acima de tudo, o respeito ao plural. Trata-se de uma lógica inteiramente
distinta da sensibilidade inquisidora que estruturou os sistemas de persecução
ao inimigo, como delineado por Eymerich no Manual dos Inquisidores: “[…] é
preciso lembrar que a finalidade mais importante do processo e da condenação à
morte não é salvar a alma do acusado, mas buscar o bem comum e intimidar o povo
(ut alii terreantur). Ora, o bem comum deve estar acima de quaisquer outras
considerações sobre a caridade visando o bem de um indivíduo.”
Para Jacinto Coutinho, “trata-se,
sem dúvida, do maior engenho jurídico que o mundo conheceu; e conhece. Sem
embargo de sua fonte, a Igreja, é diabólico na sua estrutura (o que demonstra
estar ela, por vezes e ironicamente, povoada por agentes do inferno!),
persistindo por mais de 700 anos. Não seria assim em vão: veio com uma
finalidade específica e, porque serve – e continuará servindo, se não
acordarmos –, mantém-se hígido”. De fato, o discurso de Eymerich estrutura
uma lógica de orientação punitivista do sistema penal que pode ser constatada
em vários momentos históricos, garantindo a hegemonia da ambição de verdade
processual. Tomemos como exemplo a argumentação de Francisco Campos, na
exposição de motivos do Código de Processo Penal Brasileiro “As nossas
vigentes leis de processo penal asseguram aos réus, ainda que colhidos em
flagrante ou confundidos pela evidência das provas, um tão extenso catálogo de
garantias e favores, que a repressão se torna, necessariamente, defeituosa e
retardatária, decorrendo daí um indireto estímulo à criminalidade. Urge que
seja abolida a injustificável primazia do interesse do indivíduo sobre o da
tutela social. Não se pode continuar a contemporizar com pseudodireitos
individuais em prejuízo do bem comum”.
O paralelo que pode ser traçado
entre as duas concepções não chega a ser surpreendente, uma vez que são lógicas
orientadas para o extermínio dos que são tidos como inimigos pelos poderes
estabelecidos. Entre Inquisição e Estado Novo, a correlação é mais que perceptível.
O que assusta é perceber o quanto a finalidade de intimidação ainda permeia o
imaginário jurídico, em pleno contexto democrático que a Constituição impõe ao
nosso sistema processual. A epistemologia inquisitória ainda prepondera, em
nome de uma insaciável ambição de verdade que não expressa outra coisa que um
desejo irrefreável de atingir a condenação, desprezando por completo o conceito
de que forma é garantia, como exige o devido processo legal. E tudo isso em
nome da irrealizável promessa que nos é continuamente vendida pela criminologia
midiática.
Como Zaffaroni destaca, existe um
discurso que vende “segurança” como uma abstração enganosa: “Administrativamente,
existe uma área de segurança em todo o governo, porque é necessário, de algum
modo, atribuir nomes às polícias e seus assemelhados. A criminologia midiática
se apropria dessa denominação e constrói uma realidade de segurança bastante
difusa, mas dela deduz imediatamente – e os juristas engolem – um direito à
segurança. Com essa invenção bastante indefinida, chega-se ao núcleo do
discurso autoritário, que é incutir uma falsa opção entre liberdade e
segurança, em um plano de máxima abstração”. Qualquer semelhança entre essa
falsa opção e a oposição entre “pseudodireitos individuais” e bem comum, ou
“caridade visando o bem do indivíduo” e bem comum não é mera coincidência.
É justamente essa falsa opção que
legitima discursivamente a ampliação do controle, como se o interesse de
liberdade não fosse de todos nós e como se realmente existisse um direito à
segurança para além da falácia discursiva. Que o CPP de 1941 seja autoritário e
antidemocrático não causa surpresa. Foi inspirado na lógica persecutória do
fascismo italiano e elaborado em um período autoritário da história brasileira.
O que impressiona é que seus ideais ainda sejam reproduzidos e aceitos em pleno
contexto contemporâneo. A ambição de verdade que movia o projeto
político-criminal do CPP de Francisco Campos é clara: “O juiz deixará de ser
um espectador inerte da produção de provas. Sua intervenção na atividade
processual é permitida, não somente para dirigir a marcha da ação penal e
julgar a final, mas também para ordenar, de ofício, as provas que lhe parecerem
úteis ao esclarecimento da verdade. Para a indagação desta, não estará sujeito
a preclusões. Enquanto não estiver averiguada a matéria da acusação ou da
defesa. E houver uma fonte de prova ainda não explorada, o juiz não deverá
pronunciar o in dubio pro reo ou o non liquet”.
O vínculo com a epistemologia
inquisitória do Manual dos Inquisidores é claro. A própria concepção de defesa
de Eymerich revela isso: para ele, dar o direito de defesa ao acusado é motivo
de lentidão no processo e de atraso na proclamação da sentença, o que por sinal
demonstra a que interesses serve a lógica da celeridade processual, já em sua
gênese. Se isso já parece assustador, o que dizer do comentário de De La Peña,
que afirma que Eymerich tem absoluta razão quando fala da total inutilidade da
defesa: o papel do advogado é fazer o réu confessar logo e se arrepender, além
de pedir a pena para o crime cometido.
Toda a estrutura do sistema é
voltada para a sujeição simbólica do acusado, através de inúmeros artifícios,
nos quais se inclui até mesmo o controle sobre o espaço, para garantir a
vitória do inquisidor sobre o inimigo tido como objeto de persecução. É nesse
sentido que Eymerich destaca que o acusado deve sentar-se em uma cadeira mais
baixa que a do inquisidor, a quem cabe estrategicamente extrair dele o que se
deseja, sem que lhe seja possível sequer conhecer o motivo da acusação. Segundo
Cordero, no centro encontra-se passivo, o investigado; culpado ou não, sabe de
algo e está obrigado a dizê-lo, pois a tortura estimula os fluxos verbais
contidos. O inquisidor elabora sua hipótese dentro de um marco paranoide e o
que conta acima de tudo é o resultado. Eymerich explicitamente orienta que o
inquisidor interrogue através de perguntas genéricas, como “o que você fez?” em
oposição a “matou alguém?”. O autor esclarece que trata-se de uma estratégia
concebida para confundir o réu e dificultar sua resistência diante das
artimanhas argumentativas de quem interroga.
É nesse sentido que Eymerich
detalha no manual todo um conjunto de mecanismos voltados para o interrogatório
do acusado, insistindo constantemente nas suspeitas, no que é provável e no que
já foi provado até que o acusado deixe escapar algo novo. Eymerich aconselha o
inquisidor a preparar armadilhas para obter respostas adequadas e com clareza,
caso constate que o interrogado está respondendo com cautela e malícia. De La
Peña refere que o inquisidor deve dizer ao acusado que se mostrará
misericordioso se ele confessar com clareza e rapidez, promessa que deve ser
repetida por três vezes durante os dez primeiros dias de detenção. Como refere
Cordero, havia uma verdadeira fome investigativa: provido de instrumentos
virtualmente irresistíveis, o inquisidor torturava o acusado como bem entendia;
dentro de seu marco cultural pessimista, o homem nasce culpado e estando
corrompido o mundo, basta escavar em um ponto qualquer para que o mal aflore,
um axioma que eliminava todo o escrúpulo da investigação. O processo tornou-se
assunto terapêutico; a pena era considerada um remédio; querendo ou não, o
imputado era coagido a cooperar. A barbárie inerente ao procedimento de
sujeição do acusado diante do inquisidor pode ser facilmente percebida no
trecho: “Se o acusado continuar negando, e o inquisidor achar que ele omite
seus erros – embora não haja provas –, intensificará os interrogatórios modificando
as perguntas. Obterá, deste modo, ou a confissão ou, então, respostas
discrepantes. Se obtiver respostas discrepantes, perguntará ao acusado por que,
de repente, responde de um jeito, e depois, de outro: pressiona-o a dizer a
verdade, explicando-lhe que, se não ceder, terá que ser torturado. Se
confessar, tudo bem. Senão, isso bastará, juntamente com outros indícios, para
levá-lo à tortura e, deste modo, arrancar-lhe a confissão.”
Percebe-se que procedimento era
concebido para obter a condenação; a experimentação e manipulação do acusado,
objetificado como fonte de conhecimento, invariavelmente acabaria conduzindo a
este resultado, eis que a sondagem já partia de um fim predeterminado. Se o
delito é pecado, seu reconhecimento pelo autor é uma meta do processo
inquisitório; nada se opõe a tal objetivo, que justifica todos os meios do qual
se vale o julgador para conseguir a confissão do imputado. Como reflete
Cordero, o inquisidor trabalha como bem entende sobre os animais que confessam;
concebida uma hipótese, sobre ela edifica manobras indutivas; a ausência de
debates abre espaço para o pensamento paranoico; os fatos são eclipsados pelas
hipóteses. Dono do tabuleiro dispõe as peças como lhe convém, pois a Inquisição
é um mundo verbal semelhante ao onírico: tempos, lugares, coisas, pessoas e
acontecimentos flutuam e se movem em quadros manipuláveis. Trata-se de um jogo perigoso,
pois quem escreve relata com total liberdade, seletivamente atento ou surdo aos
dados, segundo convalidem ou não sua hipótese; sendo as palavras uma matéria
plástica (os acusados as lançam como torrentes), qualquer conclusão resulta
possível; desenvolve-se um sentimento narcisista de onipotência, no qual
desaparece qualquer cautela e autocrítica.
A confissão era imprescindível
para o sistema inquisitório e não havia qualquer limitação quanto aos meios
utilizados para extraí-la, visto que eram justificados pela sagrada missão de
obtenção da verdade. A ferramenta inquisitorial desenvolveu um teorema: culpado
ou não, o imputado detém a verdade histórica; cada questão será seguramente
resolvida, bastando que o inquisidor entre em sua cabeça. Não é por acaso que
se diz que o processo era movido por ambição de verdade.
Não são poucos os autores que
consideram que os poderes que permitem que o juiz interfira na gestão da prova
devem ser complementares; no entanto, não conseguimos vislumbrar caso em que
essa atividade não seja potencialmente danosa para o acusado, motivo pelo qual
a consideramos em flagrante descompasso com a exigência de democraticidade, o
que nos parece inaceitável; afinal, tal atividade desconsidera completamente o in
dubio pro reo, uma vez que na dúvida o juiz parte em busca de provas, que
obviamente só podem ter a finalidade de obter a condenação a qualquer custo. Em
uma estrutura regrada de contenção do poder punitivo, a dúvida deve gerar
absolvição, o que expressa o próprio sentido do princípio do in dubio pro
reo. Mas o processo penal do inimigo de Campos é fundado em torno de outra
lógica, que configura um verdadeiro in dubio pro hell: diante da
dúvida, a verdade deve ser perseguida até que se chegue ao resultado desejado,
que não é outro que a condenação. Não há caso em que essa persistência não
signifique a busca da condenação a qualquer custo, já que a dúvida deveria
impor a absolvição.
O anseio persecutório delineado
pela lógica inquisitória proposta pelo sistema também pode ser percebido pela
prorrogativa dada ao juiz para que nos crimes de ação pública possa “[…] proferir sentença condenatória, ainda que o
Ministério Público tenha opinado pela absolvição, bem como reconhecer
agravantes, embora nenhuma tenha sido alegada”. A desconformidade dessa
estrutura de pensamento com a arquitetura normativa de contenção do poder
punitivo delineada pela esfera constitucional é tão clara que sequer parece
maior exploração. Como observa Lopes Jr, “[…] todos os dispositivos do
CPP que sejam de natureza inquisitória são substancialmente inconstitucionais
e devem ser rechaçados”. Portanto, diante da tentação do decisionismo, o
que se deseja é um modelo acusatório democrático, condizente com o limite
constitucional e que, como tal, mostre-se apropriado para uma perspectiva de
redução de potenciais danos, restringindo os espaços de discricionariedade do
julgador e estabelecendo a imparcialidade como um atributo sistêmico, por
exigência democrática.
Em suma, o horizonte deve ser
incisivamente contrário ao sentido concebido por Francisco Campos na exposição
de motivos do CPP de 1941. Em suas palavras, “no seu texto não são
reproduzidas as fórmulas tradicionais de um mal-avisado favorecimento legal aos
criminosos. O processo penal é aliviado dos excessos de formalismo e joeirado
de certos critérios normativos com que, sob a influxo de um mal-comprendido
individualismo ou de um sentimentalismo mais ou menos equívoco, se transige com
a necessidade de uma rigorosa e expedita aplicação da vjustiça penal.”
A dogmática processual penal
historicamente contentou-se – com raras exceções, dentre as quais Goldschmidt é
a mais expressiva – em legitimar os programas legislativos persecutórios. Nesse
sentido, parte significativa da doutrina nacional constrói o discurso
dogmático-processual a partir da exposição de motivos do CPP de 1941, inclusive
reproduzindo seus equívocos técnicos, como a utilização da expressão
trancamento da ação penal, quando o que se pode querer parar é o processo e não
a ação. Mas o pior não são os equívocos, mas sim o fascínio pela legislação
infraconstitucional e seu persecutório projeto político-criminal, enquanto a
dogmática processual deveria atender ao propósito de contenção do poder
punitivo estatal, condizente com o sentido que deve demarcar o próprio Direito
Penal.
Para que isso ocorra é preciso
repensar um conjunto de conceitos dados a municiar a arbitrariedade das
práticas punitivas e reestruturar o processo penal de acordo com o ideal
constitucional de democraticidade (Rui Cunha Martins). É somente a partir de
uma dogmática processual que não reproduza a violência do discurso dominante
que está aí que podemos manter acesa a esperança de ruptura com o paradigma
inquisitório que tristemente permanece vigente nas práticas judiciárias.
Em última análise, é preciso
fazer uma clara opção pelo devido processo legal substancial, cada um no seu
quadrado, sem funções de acusação e gestão da prova por parte do julgador (não
pode se confundir com um dos jogadores), fundado na dignidade da pessoa humana –
e, logo, na presunção de inocência – e um processo de inspiração inquisitória,
fundado na lógica de persecução ao inimigo: in dubio pro reo ou in dubio pro
hell? Em um processo o juiz ingressa predisposto a absolver, ciente de
que a posição que lhe cabe é receptiva e que é a acusação que deve derrubar a
presunção de inocência; em outro processo, o juiz entra movido por insaciável
ambição de verdade e interfere na gestão da prova, o que só pode expressar um
irrefreável desejo de condenação. Em todos os casos, todavia, o viés da
confirmação estará presente, via S1, colonizado pelo modelo de pensar paranoico
e inquisitório. E você, vai ficar olhando?”
Este texto integra a obra “In
Dubio Pro Hell 1 – Profanando o Sistema Penal”, Alexandre Morais da Rosa e
Salah H. Khaled Jr, 4.ª Edição revista e ampliada – Florianópolis, EMais
Editora, 2020, “In Dubio Pro Hell: O Processo Penal do Inimigo”, págs. 17 a 30.
Alexandre Morais da Rosa – Juiz de
Direito (TJSC), Doutor em Direito (UFPR) e Professor Universitário (UNIVALI-SC
e UFSC).
Salah H. Khaled Jr – Professor Associado
de Direito Penal, Criminologia, Sistemas Processuais Penais, História das
Ideias Jurídicas e do Mestrado em Direito e Justiça Social da Universidade
Federal do Rio Grande – FURG. Doutor e Mestre em Ciências Criminais (PUCRS).
Mestre em História (UFRGS). Especialista em História do Brasil (FAPA) Bacharel
em Ciências Jurídicas e Sociais (PUCRS). Licenciado em História (FAPA).
Presidente do Instituto Brasileiro de Criminologia Cultural.
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