João Paulo Dias – “As Faces ocultas dos “poderes” dos magistrados: Prácticas, corporativismos e resistências”
“Observamos, nos últimos anos,
uma catadupa diária de notícias referentes à famosa “crise da justiça”
portuguesa. Este facto traduz uma crescente mediatização da justiça,
transformando a sua (in)acção em assunto de discussão quotidiana e catapultando
os magistrados para uma exposição para a qual não estão ainda preparados,
situação similar ao que vem sucedendo na generalidade dos países possuidores de
um sistema judicial minimamente operante.
A atenção prestada ao
funcionamento dos tribunais faz parte dum processo de consolidação do sistema
democrático, ainda que a sua fraca prestação perante as crescentes
solicitações, quer em quantidade quer em qualidade, venha realçar a sua grande
debilidade e incapacidade na defesa dos direitos dos cidadãos, na dirimição dos
conflitos e na fiscalização da legalidade democrática. Essas notícias, no
geral, debruçam-se principalmente sobre quatro aspectos: 1) a justiça
dramática, em que são destacados processos mediáticos, envolvendo actores
políticos e económicos poderosos, que, aparentemente, transmitem a imagem de
que a justiça chega a todos de forma igual; 2) a justiça de rotina, ou
seja, na mediatização dos casos que vão a julgamento, na maior parte das vezes
referentes a processos correntes, que são (re)descobertos em termos de drama
pessoal do cidadão comum; 3) as deficiências ou limitações do
actual sistema que impedem uma verdadeira democratização da justiça, com a
referência a problemas como a morosidade, a falta de meios humanos e materiais,
o difícil acesso aos tribunais pelos cidadãos, as deficientes infraestruturas
dos tribunais, a falta de informatização judicial e/ou, noutro âmbito, a
crescente complexidade do nosso sistema legal; 4) por fim, as notícias que se
referem ao actual clima de guerra surda entre os vários operadores
judiciários, sejam eles juízes, magistrados do Ministério Público ou advogados,
sem excluir os responsáveis políticos na área da justiça ou os protagonistas da
investigação criminal, em especial os agentes da Polícia Judiciária.
Neste artigo vou, assim,
cingir-me ao «mundo» dos magistrados (juízes e magistrados do Ministério
Público), ao seu funcionamento interno, à sua organização e ao seu desempenho.
Neste âmbito, surgem as discussões que questionam o poder que detém, a legitimidade
da sua função, o princípio de paralelismo que norteia a organização das duas
magistraturas, os mecanismos de fiscalização e controlo interno e as
manifestações corporativas. Estes são apenas alguns dos temas que envolvem o
«mundo» dos magistrados, frequentemente acusados, tal como a justiça no geral,
de grande opacidade e distância. Não é por acaso que os adjectivos são os
mesmos. Sem compreender o «mundo» dos magistrados dificilmente se alcançará uma
visão completa e abrangente do funcionamento da justiça portuguesa.
A existência em Portugal de
poucos estudos que, ao contrário do que sucede nalguns países, em especial
europeus, se debrucem sobre os próprios magistrados limita esta análise. No
entanto, a investigação que realizei entre 1998 e 2002 (Dias, 2004) e o
conjunto de estudos efectuado pelo Observatório Permanente da Justiça
Portuguesa (http://opj.cej.uc.pt/), bem
como outros estudos avulsos sobre a justiça portuguesa, permitem-me elencar uma
série de tópicos que poderão “iluminar” um pouco esta face “oculta” da justiça
portuguesa.
A mediatização das
magistraturas: Um “poder” incómodo ou incomodado?
A mediatização da justiça ou,
como alguns preferem chamar-lhe, esta maior visibilidade dos tribunais,
projectou todos os seus actores internos para um novo patamar de importância.
Mesmo não sendo um protagonismo procurado, principalmente, pelos magistrados
(salvo algumas excepções), a actual importância dos tribunais torna
incontornável a sua adaptação às novas exigências e às novas expectativas
entretanto construídas no imaginário dos cidadãos. Por outro lado, a erosão dos
modernos sistemas democráticos e do prestígio dos seus protagonistas, tem vindo
a transferir a legitimidade democrática destes para os tribunais, os quais
continuam a basear a sua legitimidade no texto da lei, ou seja, na
Constituição. Deste modo, a aparente estabilidade do poder judicial, baseada
mais em princípios do que em pessoas, confere-lhe uma credibilidade fundamental
para que funcione como poder fiscalizador dos restantes poderes estatais e,
assim, contribui para a própria credibilidade dos sistemas democráticos.
Não deixa de ser sintomático dos
tempos turbulentos em que vivemos, neste início de século, o facto de passarem
pelos tribunais as expectativas dos cidadãos em readquirir uma certa
estabilidade social, laboral e económica. Isto é, os tribunais, que sempre
foram das instituições que mais se opuseram à transformação social, são hoje
vistos com uma das últimas instituições capazes de adoptar uma postura
progressista, no sentido de contrariar o apetite voraz da economia capitalista
e de garantir os direitos de cidadania conquistados nos últimos séculos, mesmo
contra a oposição dos tribunais de então (Santos et al., 1996:19). Mas,
por outro lado, a simples defesa dos direitos de cidadania incorpora elementos
conservadores se não for efectuada segundo novos princípios e, essencialmente,
sobre uma nova postura perante os novos poderes que se instalaram na organização
das sociedades modernas.
Os magistrados, em geral, são os
protagonistas mais visíveis desta nova conjuntura. O seu papel também tem vindo
a ser repensado face às transformações societais. Mas, se o seu passado foi
bastante estável e discreto, o futuro promete ser incerto e conflituoso. A
constante crispação sentida à volta dos tribunais exige-lhes uma capacidade de
confronto e de luta para a qual não foram, nem são, preparados.
As reformas introduzidas, nas
últimas décadas, têm reduzido o papel dos magistrados de julgar e interpretar
as leis, salvo algumas excepções, a meros aplicadores da legislação,
retirando-lhes a criatividade e a autonomia. A sua colagem institucional aos outros
poderes estatais que lhes garantiam o prestígio e as condições de trabalho em
troca de uma não interferência judicial implodiu. Estes factos ocorreram a para
de duas outras situações, as quais interferiram neste processo de cisão: a
desvalorização profissional dos magistrados, ocorrida nas últimas décadas,
mesmo em termos remuneratórios; e a judicialização da política, por força, não
da acção dos magistrados, mas do aumento dos conflitos inter pares no
seio do sistema partidário. Embora a desvalorização profissional tenha sido
invertida a partir do final dos anos 80, a imposição de julgar os conflitos
políticos desfez as alianças e obrigou os magistrados a entrar no meio dos
conflitos políticos. Ao decidirem, tornam-se alvo dos condenados que contestam a
sua imparcialidade e legitimidade. Desta forma, entramos num processo de
politização da justiça em que os magistrados se tornam, mesmo sem querer, em
árbitros das lutas políticas.
A divisão de poderes estatais
– “Legitimemos os magistrados que eles nos legitimarão”
A legitimidade dos magistrados
passa, então, por uma nova fase, adquirindo uma importância jamais vista. A sua
legitimidade relaciona-se, quer com os mecanismos de recrutamento e formação,
quer com o seu desempenho profissional. Mas a sua legitimidade também depende
da forma como o poder judicial se relaciona com os outros poderes políticos, não
de uma forma institucional, mas através dos conhecimentos pessoais. A ligação à
classe política, como bem observamos em Portugal, faz-se através da passagem de
magistrados pelos gabinetes de ministros, de secretários de Estado ou de outros
altos cargos na administração pública, personificando mesmo esses cargos
nalguns casos. Como afirma Antoine Garapon, referindo-se mais ao juízes, “uma
carreira brilhante de juiz não se realiza – ou muito raramente – na jurisdição,
mas contornando o Ministério da Justiça, através do destacamento para outra
administração, ou até – pela porta grande – através da passagem por um gabinete
ministerial. […] É paradoxal ver uma corporação de juízes portadora de um certo
desdém, mais ou menos dissimulado, relativamente à jurisdição que não deixa de
ser a sua razão de existir” (1998, 62). A carreira judicial faz-se, não só pelo
mérito, mas também pelo recurso à carreira política, a qual se reflecte
posteriormente na carreira judicial. No entanto, a carreira judicial não se
reduz ao exercício de funções ministeriais, podendo adquirir a forma de cargos
nas organizações sindicais ou nos órgãos superiores do poder judicial ou outras
entidades públicas (polícia, prisões, etc.), os quais servem frequentemente de
trampolim no que respeita à progressão na carreira judicial. E são muitos os
casos que se podem observar em Portugal.
A garantia da legitimidade
democrática dos magistrados depende, acima de tudo, da forma como desempenham a
sua função. E, enquanto o desempenho dos políticos é fiscalizado através das
eleições pelos cidadãos, também o desempenho dos magistrados deve recorrer a
mecanismos de controlo e fiscalização eficazes para garantir a isenção e
qualidade dos seus membros. Mas como os mecanismos de controlo e fiscalização
podem interferir, se não forem usados devidamente, com a independência dos
magistrados, a fronteira é sempre ténue e problemática. No entanto, a ausência
destes mecanismos, o seu não funcionamento ou funcionamento corporativo, tem
gerado polémicas gravemente lesivas, não só do seu prestígio, como também da
legitimidade da função que desempenham. E nada interfere mais numa profissão do
que o descrédito que se constrói à sua volta.
Entre a lei e a prática: O
corporativismo resistente
É relativamente consensual, hoje
em dia, afirmar que o enquadramento legal do nosso poder judicial e os
estatutos das magistraturas se encontram na esfera dos países centrais,
influenciando inclusivamente alguns países em processos de reforma judicial. Contudo,
e já que o problema não se inscreve na “arquitectura” legal do poder judicial, podemos
questionar se as práticas sociais resultantes do seu funcionamento estão, de
alguma maneira, distanciadas do quadro legal existente. E por aí podemos ir
seguramente.
De facto, analisando as
informações publicadas nos boletins oficiais, da Associação Sindical dos Juízes
Portugueses e do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, observamos
dirigentes a referir que temos das mais avançadas concepções de poder judicial
e de estruturas organizativas dos magistrados. No entanto, verificamos que
qualquer tentativa de alteração do actual sistema judicial embate em
resistências corporativas, originando, em consequência, um atraso na
implementação de medidas mais progressistas que no momento da sua aplicação
provoca o seu desajustamento imediato.
Constata-se, assim, um atraso
crónico na aplicação de reformas, tal é o desenvolvimento da chamada “crise da
justiça”, que Laborinho Lúcio atribui, já em 1986, “à excessiva e rápida
acumulação de questões a resolver pelos tribunais aliada às carências quantitativas
de quadros humanos e qualitativos de meios técnicos, o que precipitou, em
várias áreas, uma situação de difícil e morosa recuperação” (1986:297). É que, segundo
afirmava o magistrado Flávio Ferreira, também no longínquo ano de 1986, a
capacidade de autocrítica é proporcionalmente inversa aos interesses de classe
em jogo, ou seja, pelo menos teoricamente, a posição dos magistrados parece
indiciar que quanto mais numerosas são as críticas ao funcionamento e
organização da justiça, mais frágil e vulnerável é a sua posição. Por isso, não
é de estranhar a natural reacção a críticas externas, atribuídas frequentemente
a meras lutas de poder e afrontas políticas, pois, como afirmou Chaim Perelman,
“não devemos esquecer que todo o debate judiciário e toda a lógica jurídica
concernem apenas à escolha das premissas que forem mais bem motivadas e
suscitem menos objecções” (1998:242).
A resistência corporativa é,
igualmente, visível na discussão de alterações legislativas em que, vezes
demais, as preocupações relativas às suas funções e competências se sobrepõem
ao interesse público de uma justiça mais operante, eficaz e justa. Esta “luta”
por uma posição dominante reflecte-se, essencialmente, na legislação penal,
onde os conflitos mais mediáticos e importantes se travam. Logo, o desejo por
um maior protagonismo/poder origina a adopção de posições que permitam um maior
protagonismo por parte de cada profissão e leva, igualmente, ao estabelecimento de
negociações “preferenciais” com os actores políticos. Os sucessivos ministérios
da Justiça têm sido, por vezes, e consoante as equipas, apelidados de
“próximos” dos juízes, do Ministério Público ou, como actualmente, dos
advogados. E as prioridades políticas de reformas judiciais reflectem bastante
bem esse jogo de equilíbrios.
O corporativismos interno: A
luta pelo poder
O poder judicial ou, mais
concretamente, a ocupação dos cargos nos órgãos que gerem o sistema judicial
são demonstrativos de um funcionamento corporativo por parte dos magistrados. A
circulação pelos vários órgãos judiciais, tribunais superiores ou associações
de magistrados pressupõe o cumprimento de certas regras e o assumir de
determinados comportamentos. O resultado proporciona a existência de fortes
mecanismos informais de controlo interno das magistraturas e de relações
hierárquicas bastante vincadas.
O estudo da composição das
associações profissionais, dos conselhos superiores e da promoção aos tribunais
superiores, para não mencionar a proposição de nomes para outros órgãos
judiciais ou policiais (Centro de Estudos Judiciários, Polícia Judiciária, PSP,
etc.), que pressupõe a autorização dos conselhos superiores, demonstra uma
“estranha” circularidade por estes diversos órgãos ou entidades.
O percurso mais frequente dos
magistrados inicia-se na Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP) ou
no Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP), consoante a
magistratura. Depois, e como a ASJP e o SMMP costumam “patrocinar” as listas
submetidas a votos, no seio dos magistrados, para a eleição dos seus
representantes no Conselho Superior da Magistratura (CSM) e do Conselho
Superior do Ministério Público (CSMP), acabem por participar na escolha dos
magistrados para estes importantes órgãos judiciais. Como estes órgãos detêm as
competências de exercício da acção disciplinar, de avaliação do desempenho
profissional e de gestão da mobilidade dos magistrados, é fácil de perceber o
“poder” que aí se concentra. E como a carreira dos magistrados depende
directamente da sua acção, o respeito que os magistrados demonstram por estes
órgãos é bem demonstrativo do “poder” que emana. Por fim, temos o acesso aos
tribunais superiores (Supremo Tribunal de Justiça e Tribunais da Relação),
decisão que passa pela intervenção do CSM e do CSMP, através da realização de
concursos que, naturalmente, são avaliados pelos membros dos conselhos
superiores, com especial predominância para a opinião dos membros magistrados
(face ao peso que os membros não magistrados detêm).
As faces do controlo interno
das magistraturas
O controlo e a fiscalização da
actividade das magistraturas efectuam-se numa quádrupla vertente. A mais
complexe e polémica, ainda que porventura não a mais importante, decorre da
exposição pública da sua actividade, através da acção dos meios de comunicação
e da opinião pública. Os efeitos desta interacção ainda estão pouco estudados e
a falta, demasiado evidente, de preparação dos magistrados para lidar com esta
nova “exposição” pública da actividade judiciária origina a ocorrência de
episódios lamentáveis, como os verificados em recentes processos de grande
carga dramática.
Um segunda vertente refere-se às
competência exercidas pelo Conselho Superior da Magistratura e pelo Conselho
Superior do Ministério Público, designadamente ao nível da avaliação do
desempenho profissional e do exercício da acção disciplinar. O estudo que
publiquei recentemente demonstra), a este nível, que estes órgãos têm exercido
estas competências com algum grau de superficialidade e corporativismo. Assim,
em termos disciplinares, os dados estatísticos, devidamente confrontados com
entrevistas, demonstram um baixo número de sanções e de medidas disciplinares
aplicadas. A evolução dos dados estatísticos, nos últimos 25 anos, não sofreu
grandes alterações por via das mudanças dos critérios utilizados ou pelo
crescimento do número de magistrados (a melhoria técnico-jurídica dos
magistrados, por via da formação ministrada no CEJ não é mensurável, nem se
encontra estudada). Mesmo assim, os últimos anos analisados permitem atenuar
esta visão de longo prazo, devido ao acréscimo verificado, quer no número de
inquéritos e de processos disciplinares, quer no número de sanções
disciplinares aplicadas. Dentro das medidas aplicadas, observa-se que a maioria
refere-se às penas mais leves (advertência e multa), enquanto as mais graves
são empregues apenas em casos extremos. E são conhecidas, pelo menos dentro das
magistraturas e operadores judiciários, algumas situações que exigiriam uma
acção mais proactiva.
A avaliação do desempenho
profissional é outro aspecto da segunda vertente, relativa à actividade dos
conselhos superiores. A predominância de elevadas classificações é a principal
ilação a retirar da análise dos dados estatísticos. Constata-se uma subida
anual, gradual nas tipologias mais positivas (Muito Bom e Bom Com Distinção),
em especial para o CSMP, e o consequente decréscimo nas restantes tipologias
(Bom, Suficiente e Medíocre). Esta situação é particularmente visível nos anos
que antecederam as alterações nas leis orgânicas dos tribunais judiciais e dos
estatutos das magistraturas, facto que veio alterar as perspectivas de
progressão na carreira. Como a subida aos tribunais superiores se faz por via
de concurso em que o mérito constitui um dos critérios, a «corrida» a uma
elevada poderá fazer-se sentir em ambas as magistraturas, como se observa na
existência de classificações mais elevadas consoante se progride na carreira. No
entanto, os últimos três anos analisados permitiram detectar um “refreamento”
nesta tendência, com maior relevo para o Ministério Público, visto que era
nesta magistratura que se registava um maior “empolamento” das classificações.
No outro lado da balança, o número de classificações negativas tem-se mantido
praticamente inalterado e quase sem relevo (embora, mais uma vez, os últimos
anos pareçam demonstrar um maior rigor ou contenção nas avaliações, como se
comprova pelo maior número de suficientes e medíocres
atribuídos). Realce, ainda, para três aspectos: os critérios das inspecções,
que levantam bastantes dúvidas na forma como são aplicados, devido ao seu alto
grau de subjectividade; a repetição dos relatórios, por parte dos inspectores,
não havendo uma personalização face a cada um dos magistrados inspecionados; e
o facto dos conhecimento pessoais e a antiguidade deterem uma importância
considerável na atribuição de notas, quer nas propostas dos inspectores, quer,
posteriormente, na classificação final decidida pelos membros dos Conselhos
Superiores.
A terceira vertente, em que se
exerce um controlo interno nas magistraturas refere-se aos mecanismos de
colocação e transferência de magistrados: os designados movimentos.
Embora existam critérios legais para o movimento de magistrados segundo,
essencialmente, a nota da avaliação do desempenho profissional e a antiguidade
na carreira, é frequente registarem-se colocações utilizando outros critérios
(influências pessoais, conveniências de serviço, urgências processuais,
substituições, etc.). A possibilidade de utilização de mecanismos informais
para o movimento de magistrados, com maior incidência no Ministério Público,
coloca este acto num grau de discricionariedade bastante grande, visto que o
processo se baseia em procedimentos muito rudimentares. E não é por acaso que
as magistraturas resistem à informatização e autonomização da gestão de
quadros.
A quarta vertente relaciona-se
com a existência de hierarquias informais internas. Se a magistratura do
Ministério Público é estruturada de forma hierárquica, já com os juízes não
acontece o mesmo, de acordo com o princípio da independência. Assim, enquanto
no Ministério Público existe uma hierarquia institucionalizada, ainda que
exista o princípio de autonomia, nos juízes não há uma hierarquia formal,
defendida pelo princípio da independência. Contudo, e paralelamente a estes
princípios, existe, em ambas as magistraturas, uma hierarquia informal, baseada
na antiguidade, no exercício de cargos nos órgãos judiciais (seja como membro
dos Conselhos Superiores ou inspector judicial), nos conhecimentos pessoais ou
no desempenho de funções em tribunais superiores. Esta hierarquia multifacetada
consubstancia-se, por vezes, numa falta de independência no exercício das suas
funções, mais evidente sempre que se trata de processos mais mediáticos. Os
recentes processos mediáticos, onde o papel desempenhado pelo Conselho Superior
da Magistratura e pela Procuradoria-Geral da República foi bastante visível,
demonstram que um magistrado exerce funções num campo limitado pela lei e pelo
jogo de influências dos bastidores, onde vários “poderes” se conjugam e ditam
as regras.
Entre os critérios legais que
enformam a actividade dos magistrados e os critérios reais que prevalecem,
verificamos que estes mecanismos informais de controlo interno são bastante
“apertados” e pouco transparentes, denotando um exercício de funções com uma
autonomia e/ou independência reduzida. E sendo, ainda por cima, uma classe com
um baixo número de elementos (as duas magistraturas rondam os 3000
profissionais), mais fácil se tornam manter um “apertado” controlo.
Agora puxas tu, agora puxo eu:
O princípio do paralelismo
A aprovação sucessiva das leis
referentes à organização judiciária e aos estatutos das magistraturas foi
efectuado, nos últimos 30 anos, sem uma ordem aparente (Dias, 2004). No
entanto, esta aparente descoordenação, em termos de coerência legislativa, pode
esconder uma outra estratégia, relativamente a algumas das preocupações e
intenções que estão por detrás dos objectivos enunciados pelo poder político,
em especial na revisão dos estatutos das magistraturas.
A análise das leis publicadas
desde 1974 revela, no que respeita aos deveres direitos das magistraturas
inseridos nos estatutos, algumas perplexidades. Por um lado, verificou-se uma
intervenção minimalista no âmbito da organização das magistraturas, das suas
funções e dos mecanismos de responsabilização (embora neste último domínio
tenha havido uma preocupação em aperfeiçoar o sistema). Por outro lado,
observa-se uma intervenção maximalista nos capítulos referentes aos direitos e
regalias das magistraturas, seja no exercício das suas funções nos tribunais,
seja mesmo na situação de reforma. Esta estratégia insere-se na consagração do
famoso princípio do paralelismo entre as duas magistraturas. O que se
observa, no âmbito deste princípio, é o constante elevar da fasquia dos
direitos e garantias, enquanto que os deveres, responsabilidades, obrigações e
mecanismos de fiscalização se mantêm bastante mais estáveis. Deste modo, a
aprovação de um novo estatuto, independentemente da magistratura beneficiada
inicialmente, implica o aumento dos direitos e regalias, prevendo-se que,
devido ao referido princípio, estes serão rapidamente extensíveis à outra
magistratura. Esta situação leva-nos a considerar que, atrás da intenção de
aperfeiçoar o sistema judicial e o funcionamento dos tribunais, se encontra o
objectivo de elevar o nível das regalias e dos direitos que os magistrados
usufruem. Ambas se completam, e uma não avançaria sem a outra.
A duplicação de legislação relativa
às duas magistraturas (Estatuto dos Magistrados Judiciais e Estatuto do
Ministério Público) obriga-nos a questionar se o princípio do paralelismo, face
a esta estratégia, não deveria desembocar num único estatuto que contemplasse
as diferenças existentes entre as duas magistraturas mas aplicasse a ambas as
disposições que demonstrassem ser comuns. Evidentemente, esta opção implicaria
um maior esforço de negociação e consensualização, mas também permitia ladear
este aparente “conflito” entre magistraturas, do qual ambas têm beneficiado. A adopção
de uma estratégia com este perfil unitário permitiria compreender melhor o
sistema e obrigaria a uma maior articulação das magistraturas, como, por
exemplo, na harmonização do período em que se realizam os movimentos de
magistrados, por forma a interferir o mínimo possível no funcionamento dos
tribunais.
Um exemplo desta estratégia
observa-se nas disposições inseridas na última Lei de Organização e Funcionamento
dos Tribunais Judiciais (Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro) referentes às
equiparações profissionais e níveis remuneratórios, as quais deviam apenas ter
sido incluídas nos Estatutos dos Magistrados Judiciais (Lei n.º 143/99, de 31
de Agosto) e do Ministério Público (Lei n.º 60/98, de 27 de Agosto). Mas como o
primeiro só foi aprovado depois e o segundo foi publicado antes, optou-se por
inserir nesta lei dos tribunais as questões da equiparação a Juiz de Círculo,
entretanto extinto, nomeadamente dos magistrados a exercerem funções nos
tribunais especializados, aplicando-se esta disposição aos magistrados do
Ministério Público pela nomeação de, pelo menos, um Procurador para cada um
destes tribunais.
Evidentemente, esta opção
originou o intitulado “engordamento” das categorias intermédias das
magistraturas. Este “engordamento”, segundo a designação utilizada por Pedro
Coutinho de Magalhães (1999), verificou-se igualmente nos tribunais superiores,
sendo exemplificativo o caso do Supremo Tribunal de Justiça, com a instituição
dos juízes além do quadro. Não havendo formas alternativas de compensação pela
progressão na carreira, sem subir de categoria de tribunal, o desbloqueamento
tem-se verificado ao nível do alargamento dos quadros superiores, originando,
não só um empolamento artificial das necessidades, mas também um esvaziamento
dos tribunais de primeira instância, aqueles que mais problemas sentem com o
avolumar dos processos. Isto ocorre porque não se garantiu, quer uma fase transitória,
quer a rápida substituição dos magistrados entretanto promovidos.
Este recente “engordamento”,
ocorrido nos finais dos anos 90, foi conseguido pela geração do pós-25 de
Abril, líder das grandes reformas introduzias, mas que se encontrava bloqueada.
No entanto, quem mais sofrerá a curto e médio prazo serão as novas gerações de
magistrados, para quem a progressão na carreira, com o actual sistema, será um
horizonte de longo prazo.
Conclusões
“Administrar a justiça em nome do
povo” (art. 202º da Constituição da República Portuguesa) é a função dos
magistrados. No entanto, a análise do que tem sido o seu desempenho nos últimos
30 anos leva-nos a questionar se este artigo da Constituição foi correctamente
aplicado. Perante os vários tópicos de reflexão que enunciei, posso afirmar que
as expectativas personificadas na democratização do regime político em
Portugal, em 1974, não se manifestaram com a mesma intensidade no sistema
judicial e nos seus protagonistas: os magistrados.
O paradoxo da situação actual é
que, perante uma erosão dos outros poderes estatais e os limites ao exercício
de uma democracia plena, os magistrados são chamados, cada vez mais, para
dirimir os conflitos políticos e as violações dos direitos dos cidadãos, transformando-se
em “guardiães” da democracia. Contudo, o funcionamento do sistema judicial não
é, ainda, internamente democrático e os interesses corporativos têm-se
sobreposto, vezes demais, ao imperativo de fazer justiça em nome do povo.
A credibilização da justiça e o
seu funcionamento democrático exige, assim: uma nova cultura judiciária
democrática, que passa logo pelo processo de selecção e formação; um novo
modelo de organização e gestão das magistraturas, mais aberto, transparente,
democrático e com regras de avaliação e exercício disciplinar claras, e uma
participação de profissionais, não magistrados, capazes de contribuir para uma
maior abertura e profissionalização da organização e gestão das magistraturas e
para um funcionamento menos corporativo.
A independência judicial deve ser
uma independência democrática, e não, como por vezes tende a ser discutida e
colocada, uma independência corporativa (Santos et al., 1996:699). Para
isso, era necessário que as lutas dos magistrados se centrassem menos nas
prerrogativas da organização institucional e profissional das magistraturas e
mais na relevância e papel social dos tribunais. Uma sociedade democrática só
se alcança se tivermos um sistema judicial democrático, externa e internamente.
Por isso, o mundo dos magistrados deve deixar de ser “admirável” para poder ser
“admirado” por todos os que vêem nele uma réstea de esperança numa sociedade em
que os direitos de cidadania sejam respeitados e efectivos. Os “poderes” dos
magistrados devem, assim, ser o “poder” dos cidadãos para efectivar os seus
direitos.”
Este texto corresponde ao Working
Paper: Dias, João Paulo (2004), "As faces ocultas dos «poderes» dos
magistrados: práticas, corporativismos e resistências", Oficina do CES,
215, disponível em https://estudogeral.uc.pt/bitstream/10316/32706/1/As%20faces%20ocultas%20dos%20poderes%20dos%20magistrados.pdf
João Paulo Dias é um dos
Investigadores do Observatório Permanente da Justiça (e do Centro de Estudos
Sociais da Universidade de Coimbra) “e que em conjunto com Paula Casaleiro
apresentam os resultados preliminares do Estudo desenvolvido no âmbito do
Observatório Permanente da Justiça sobre
“condições de trabalho, desgaste profissional e bem-estar dos/as magistrados/as
do Ministério Público portugueses/as”, no XII Congresso do Ministério Público,
que decorre entre 29 de fevereiro e 2 de março, em Ponta Delgada (Açores),
organizado pelo Sindicato dos Magistrados do Ministério Público. Este estudo
tem como objetivo avaliar as condições de trabalho, o desgaste profissional
(burnout), a saúde e o bem-estar dos/as magistrados/as do Ministério Público a
exercer funções nos tribunais portugueses, tendo aplicado, entre outros
instrumentos metodológicos, um inquérito por questionário e entrevistas
semiestruturadas” - https://opj.ces.uc.pt/2024/03/10/joao-paulo-dias-e-paula-casaleiro-apresentam-o-estudo-sobre-condicoes-de-trabalho-desgaste-profissional-e-bem-estar-dos-as-magistrados-as-do-ministerio-publico/
Tal como foi recentemente noticiado
em https://www.publico.pt/2024/02/29/sociedade/noticia/saude-mental-procuradores-preocupante-juizes-2082113
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