Como Funciona o Fascismo — Jason Stanley em síntese crítica


Em Como Funciona o Fascismo (2018), Jason Stanley, filósofo em Yale e filho de sobreviventes do Holocausto, descreve o fascismo não como uma relíquia do passado, mas como um conjunto de estratégias que podem regressar sob novas roupagens. O seu alerta é simples: não é preciso haver campos de concentração para que a política fascista corroa uma democracia; basta que certas ideias e retóricas se normalizem, uma após a outra, até que o intolerável se torne hábito.

O livro organiza-se em dez pilares. Cada um representa uma engrenagem dessa máquina política. Separados, parecem inofensivos. Em conjunto, constroem um projeto capaz de redefinir a verdade, a justiça e a própria noção de cidadania.


O Passado Mítico

A política fascista ergue-se sempre sobre a promessa de restaurar uma idade de ouro perdida, um tempo imaginário de grandeza nacional, moralidade e pureza. Essa memória nunca corresponde à realidade histórica, mas funciona como bússola emocional. A nostalgia seletiva dá força ao discurso de exclusão: se a grandeza se perdeu, foi porque alguém — um “outro” — a roubou.


Propaganda

Não basta inventar mentiras; é preciso criar um ecossistema que confunda, sature e fragilize o próprio conceito de verdade. A propaganda fascista mistura factos com distorções, multiplica repetições, alimenta teorias da conspiração. O objetivo não é convencer, mas tornar impossível o debate racional. A lealdade substitui o argumento.


Anti-Intelectualismo

Especialistas, professores, jornalistas e cientistas tornam-se alvos preferenciais. A complexidade é ridicularizada como elitismo; a dúvida, como traição. Quando a sociedade deixa de confiar no saber crítico, o único farol passa a ser a voz do líder.


Irrealidade

A inundação de falsidades e ambiguidades transforma a vida pública num terreno instável. De tanto repetir versões contraditórias, instala-se a sensação de que nada é seguro. Quando a verdade se dissolve, quem manda já não precisa de justificar-se: basta impor a sua narrativa.


Hierarquia

O princípio da igualdade é corroído pela ideia de que há cidadãos mais legítimos do que outros. O fascismo naturaliza desigualdades: a “nação verdadeira” deve ocupar o centro, as minorias são toleradas ou excluídas. O género masculino, a identidade religiosa ou étnica dominante tornam-se a medida implícita de pertença.


Vitimização

Paradoxalmente, a maioria dominante apresenta-se como vítima. Elites cosmopolitas, minorias atrevidas ou forças estrangeiras são acusadas de conspirar contra o “povo verdadeiro”. Assim, a violência aparece sempre justificada como legítima defesa.


Lei e Ordem

O discurso punitivista é central. Estatísticas descontextualizadas e pânicos morais alimentam a ideia de que só medidas duras garantem segurança. A lei deixa de ser um limite ao poder: passa a ser uma arma identitária, dirigida contra os que não pertencem.


Ansiedade Sexual

Questões de género, família e sexualidade são exploradas até à exaustão. A diversidade é apresentada como degenerescência, a “proteção das crianças e das mulheres” é instrumentalizada como bandeira moral. O corpo transforma-se em fronteira política.


Sodoma e Gomorra

A cidade cosmopolita, diversa e criativa é apresentada como foco de corrupção e decadência. Em contrapartida, o campo é mitificado como bastião da pureza, guardião da verdadeira essência nacional. É um contraste simbólico que divide a sociedade em territórios morais.


Trabalho Redentor

O sofrimento pelo trabalho é exaltado como virtude; a assistência social é seletiva, reservada apenas para os “nossos”. A pobreza, em vez de sinal de desigualdade estrutural, torna-se prova de falha individual ou de origem estrangeira. Assim, até o Estado social é transformado em instrumento de exclusão.


A Complacência das Elites

Nos anos 20 e 30, Mussolini foi legitimado por industriais e monárquicos; Hitler chegou ao poder apoiado por elites conservadoras que acreditaram que o poderiam domesticar. Intelectuais e académicos preferiram o silêncio ou mesmo a colaboração, dando prestígio a quem minava as próprias bases da cultura. Hoje, a lição mantém-se: a política fascista não avança sem o selo de respeitabilidade concedido pelas elites culturais, mediáticas e políticas. É nesse gesto de normalização que se abre a porta ao intolerável.


A Imprensa e a Irrealidade

Na Alemanha e na Itália do entre-guerras, a captura de jornais e rádios fabricou escândalos e deslocou gradualmente a fronteira do aceitável. O intolerável foi introduzido passo a passo, até parecer normal. Atualmente, o processo acelera-se com redes sociais e infotainment. O desmentido chega, mas já não importa: a crença identitária solidificou. A realidade deixa de ser factual e passa a ser tribal. É assim que a janela do aceitável se desloca — aquilo que ontem parecia impensável, hoje já se discute; amanhã, será prática comum.


Consideração Final

Jason Stanley não pretende oferecer um manual de exatidão histórica, mas uma grelha de diagnóstico precoce. Os dez pilares funcionam como sinais de alerta. O perigo maior não está apenas nos que promovem ativamente estas ideias, mas nos que lhes dão palco, prestígio e complacência. O fascismo não começa com tanques nas ruas. Começa com palavras, com slogans, com a lenta normalização da exceção. E se a história tem alguma lição a oferecer, é a de que o preço da indiferença é sempre demasiado alto.


https://en.wikipedia.org/wiki/How_Fascism_Works

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