Eles pensaram que eram livres - Milton Mayer e a normalização do inaceitável

 

Milton Mayer, jornalista americano, viveu em 1953–54 numa pequena cidade alemã (que disfarçou como Kronenberg) e conversou longamente com dez homens comuns que tinham sido membros do partido nazi. Daí nasceu o livro They Thought They Were Free: The Germans 1933–1945, publicado em 1955 e ainda hoje perturbador.

Não eram fanáticos nem grandes criminosos. Eram homens de classe média-baixa — funcionários, técnicos, lojistas, professores. Quase todos se viam como “bons cidadãos” que simplesmente seguiram o fluxo da história.


Passos pequenos, plausíveis, fatais

“O que aconteceu aqui foi a habituação gradual das pessoas, passo a passo. Cada passo foi pequeno, plausível — e um dia estava acima da sua cabeça.”

Mayer mostra como o totalitarismo não cai do céu; infiltra-se devagar. Pequenos decretos, rotinas de partido, rituais de pertença. Nada parecia dramático por si só. Mas a soma tornava o inaceitável normal.


O autoengano moral

Os entrevistados viam-se como corretos, honestos, trabalhadores. O antissemitismo, as perseguições e a violência política eram “assuntos do governo”, que não punham em causa a vida diária. Mayer desmonta esse autoengano: a recusa em olhar de frente não absolve, mas sim revela a fragilidade moral de toda uma sociedade.


O silêncio das elites e da imprensa

“Nada parecia tão perigoso como se opor a tempo, e nada pareceu tão urgente como se adaptar.”

As elites locais acomodaram-se para manter privilégios, a universidade e os técnicos apresentaram a política nazi como mera administração, e a imprensa oscilou entre propaganda e autocensura. O resultado foi uma complacência difusa que permitiu ao regime consolidar-se sem sobressaltos visíveis. O silêncio tornou-se mais eloquente do que qualquer discurso.


Ecos para hoje

“A normalização do ‘só mais uma exceção’ abre sempre caminho ao permanente.”

O livro é menos sobre os alemães de 1933–45 e mais sobre a fragilidade das democracias em qualquer tempo. Mostra como o silêncio respeitável das elites pode tornar-se cumplicidade, e como a nostalgia seletiva mascara a violência estrutural. O perigo, ontem como hoje, não é o choque súbito, mas o hábito quotidiano que corrói a vigilância democrática.


Por que reler Mayer?

Porque mostra que o fascismo não precisa de fanáticos: basta pessoas comuns a habituarem-se, passo a passo.


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