A Ilusão da Memória — Quando a Recordação Engana a Verdade - Julia Shaw (2016)
Nota biográfica
Julia Shaw (n. 1987) é psicóloga forense, investigadora e professora associada honorária no University College London (UCL), onde se especializa em memória, sugestibilidade e psicologia do testemunho. Doutorada em Psicologia pela Universidade de British Columbia (Canadá), tornou-se uma das vozes mais influentes da atualidade na análise científica da falibilidade da memória humana e das suas implicações no sistema de justiça criminal.
Shaw é consultora e colaboradora de várias forças policiais e agências judiciais britânicas e europeias, participando em programas de formação para interrogatórios, reconhecimento e avaliação da prova testemunhal. O seu trabalho tem sido utilizado para melhorar metodologias de investigação criminal e prevenir condenações injustas, não por desconfiança do Estado, mas por compromisso com a fiabilidade científica da prova.
Além de A Ilusão da Memória (The Memory Illusion, 2016), é autora de Evil: The Science Behind Humanity’s Dark Side (2019) e cofundadora da Spot, uma plataforma baseada em inteligência artificial utilizada por empresas e instituições públicas para recolha imparcial de relatos de assédio e discriminação — projeto que mereceu reconhecimento da BBC, Forbes e The Guardian pela inovação ética e tecnológica.
A sua reputação internacional faz com que juízes, procuradores e forças policiais a citem regularmente como referência na formação forense e na revisão de procedimentos de inquirição. É, por isso, uma autora de leitura indispensável não apenas para a defesa, mas para a própria magistratura e órgãos de polícia criminal, quando se trata de compreender como a memória humana pode trair, com aparente sinceridade, a verdade dos factos.
1. Introdução: a verdade enganadora da lembrança
Em A Ilusão da Memória, a psicóloga forense Julia Shaw desmonta uma das crenças mais persistentes do senso comum e do sistema judicial: a ideia de que a memória humana é um registo fidedigno dos factos vividos. A autora demonstra, com base em décadas de investigação empírica, que a memória é maleável, reconstructiva e vulnerável à influência externa, sendo mais próxima de uma narrativa constantemente editada do que de um arquivo estático.
Shaw propõe um quadro científico que tem implicações diretas para a justiça criminal — onde a credibilidade de testemunhos, reconhecimentos visuais e confissões continua a ser tratada como sinónimo de verdade material. O livro, publicado inicialmente em inglês sob o título The Memory Illusion (2016), tornou-se referência obrigatória na psicologia forense contemporânea.
“A memória não é um vídeo gravado do passado, é um filme que reescrevemos de cada vez que o projetamos.”
2. A arquitetura enganosa da memória
Shaw explica que recordar é um processo reconstrutivo e não reprodutivo. Cada ato de rememoração implica uma reconstrução ativa, sujeita a interferências internas (emoções, expectativas, esquemas cognitivos) e externas (sugestões, linguagem, autoridade, repetição).
Assim, o simples ato de recordar altera a própria memória. A autora mostra como, através de processos de consolidação e reconsolidação neuronal, o cérebro regrava o conteúdo da lembrança, frequentemente substituindo detalhes originais por inferências ou sugestões posteriores.
Do ponto de vista jurídico, esta conclusão é devastadora: quanto mais vezes uma testemunha “recorda” um facto — em interrogatórios, reconstituições, confrontos ou audiências —, maior é a probabilidade de a sua lembrança se desviar da verdade histórica.
“Recordar é editar; cada nova recordação é uma nova versão do passado.”
3. A criação de falsas memórias: a evidência empírica
Julia Shaw ficou conhecida por ter induzido falsas memórias de crimes em indivíduos inocentes num estudo amplamente divulgado (Shaw & Porter, 2015). Apenas com entrevistas sugestivas e linguagem indutora, mais de 70% dos participantes passaram a acreditar — e a descrever com pormenor — crimes fictícios que nunca tinham cometido.
Este dado sustenta um princípio hoje amplamente reconhecido pela neurociência e pela psicologia cognitiva: a lembrança subjetiva de um evento, mesmo acompanhada de emoção e detalhe, não garante a sua veracidade.
No contexto forense, tal desmonta a suposição judicial de que a coerência narrativa equivale a autenticidade mnésica. A autora sublinha que a confiança do depoente não é preditor fiável da exatidão da memória — um erro sistemático frequentemente cometido por juízes e jurados.
“A confiança é um sentimento; a exatidão é uma questão de probabilidade. O primeiro é humano, o segundo é científico.”
4. Sugestão, autoridade e erro judicial
O livro mostra, com exemplos reais e experimentais, que a autoridade e a forma de questionamento moldam diretamente o conteúdo da recordação. Uma pergunta como “Que cor era o carro que fugiu?” induz a existência de um carro, mesmo quando nenhum existiu.
No ambiente judicial, onde o arguido ou a testemunha enfrentam pressão emocional, hierarquia institucional e linguagem técnica, o risco de contaminação sugestiva é exponencial. Shaw reforça que as memórias falsas não são mentiras, mas construções autênticas para o próprio sujeito — razão pela qual a sua convicção é inabalável e a refutação racional frequentemente inútil.
“Não precisamos mentir para errar. A memória mente por nós, e fá-lo com sinceridade.”
5. Implicações jurídicas: da psicologia cognitiva à epistemologia da prova
A autora defende que a justiça precisa de abandonar o paradigma testemunhal como eixo de verdade, substituindo-o por um modelo probabilístico e cientificamente informado. A avaliação da prova deve integrar o conhecimento sobre viés cognitivo, falsa lembrança e sugestibilidade.
A aplicação deste conhecimento é particularmente relevante em:
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Reconhecimentos pessoais e line-ups (onde a taxa de erro pode ultrapassar 50% em condições não controladas);
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Depoimentos infantis (altamente suscetíveis a sugestões verbais e emocionais);
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Confissões obtidas sob stress, privação de sono ou isolamento, onde o cérebro busca coerência e cria narrativas falsas para reduzir o desconforto.
Para a autora, a crença na memória como prova direta é uma das falhas estruturais do sistema penal moderno. A solução passa por reconhecer que a verdade processual não pode depender de um órgão falível que “edita o passado” a cada evocação.
“A memória é o maior risco probatório do século XXI, porque continua a ser tratada como evidência quando é, em si mesma, um processo criativo.”
6. Da neurociência à prudência judicial
A neurociência contemporânea confirma as teses de Shaw: estruturas como o hipocampo, a amígdala e o córtex pré-frontal medial estão envolvidas na reconstrução e não na reprodução de memórias. Cada recordação é uma simulação preditiva — o cérebro antecipa e preenche o passado com base em modelos mentais e contextos atuais (consoante também o quadro teórico de Lisa Feldman Barrett e Karl Friston).
Isto significa que não existe “acesso direto” ao passado, mas apenas reconstruções geradas no presente. No campo judicial, esta constatação impõe um dever acrescido de prudência e a necessidade de correlação de todas as declarações com elementos objetivos, físicos ou digitais, antes de as converter em convicção.
“A lembrança é uma predição retrospetiva — uma suposição sobre o que foi.”
7. Síntese crítica e relevância para a justiça portuguesa
“A Ilusão da Memória” é uma obra indispensável para qualquer jurista que pretenda compreender os limites epistémicos da prova testemunhal.
Julia Shaw desmonta o dogma da verdade lembrada e obriga o direito a dialogar com a ciência cognitiva.
No contexto português, em que a livre apreciação da prova (art. 127.º CPP) é frequentemente exercida sem critérios científicos ou protocolos cognitivos de controlo de erro, a leitura deste livro revela-se urgente.
Ignorar este corpo de conhecimento é negligência epistémica — e pode configurar erro de julgamento evitável.
“A justiça que ignora a ciência da memória julga com os olhos fechados e o ouvido crédulo.”
8. Conclusão
Julia Shaw não destrói a memória; humaniza-a. Ao reconhecer o seu caráter falível, convida o sistema judicial a reformular o modo como define verdade e culpa.
A “ilusão” do título não é a da recordação — é a da confiança cega na recordação.
Para o direito, a lição é inequívoca: sem integração do conhecimento científico sobre o funcionamento da mente, o processo penal corre o risco de continuar a confundir convicção com verdade, e lembrança com prova.
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