O Cérebro Ideológico - quando a rigidez mental se torna crença - uma síntese crítica à obra de Leor Zmigrod (2025)

 

Leor Zmigrod: da cognição à ideologia

Leor Zmigrod é neurocientista e investigadora da Universidade de Cambridge. Estuda há mais de uma década a relação entre flexibilidade cognitiva, neurociência da ameaça e ideologias políticas. Os seus trabalhos têm sido publicados em revistas científicas de referência e integrados em relatórios sobre extremismo e polarização social. Em O Cérebro Ideológico (The Ideological Brain), Zmigrod sintetiza esse percurso de investigação e propõe uma ideia provocadora: a ideologia é menos uma questão de conteúdo e mais um estilo de pensamento.


“Não é o que acreditamos que importa, mas como acreditamos.”

A tese central é clara e sustentada: pessoas com menor flexibilidade cognitiva e maior intolerância à ambiguidade tendem a aderir mais facilmente a visões do mundo dogmáticas e dicotómicas, sejam políticas, religiosas ou morais. A ideologia, nesse sentido, é o espelho de um cérebro que prefere certezas.

O livro baseia-se numa série notável de estudos empíricos, envolvendo testes de reversal learning, task-switching e tolerância à incerteza, cruzados com questionários ideológicos. A consistência estatística é robusta e transversal a culturas e orientações políticas: tanto o radicalismo de direita como o de esquerda podem emergir da mesma arquitetura cognitiva - um cérebro menos disposto a rever as suas previsões perante evidência dissonante.


“A rigidez não é uma ideologia: é um estilo cognitivo.”

A principal virtude da obra é traduzir um corpus científico complexo numa narrativa acessível e rigorosa. Zmigrod não cai na caricatura do “determinismo neurológico”: reconhece que o cérebro é plástico e que o treino da flexibilidade - exposição à ambiguidade, empatia cognitiva, pensamento contrafactual - pode reduzir a propensão ao extremismo. É um livro otimista, no sentido mais racional do termo.

Ao mesmo tempo, a autora propõe um diálogo entre neurociência e política, sem o transformar em reducionismo biológico: as ideias têm raízes neuronais, mas florescem no solo social.


Entre o cérebro preditivo e as emoções universais

Um ponto que pode surpreender o leitor mais atento é o modo como Zmigrod explica brilhantemente o modelo do cérebro preditivo - o cérebro como sistema que antecipa e atualiza hipóteses sobre o mundo -, mas depois recorre, em matéria emocional, a uma perspetiva mais clássica de emoções universais. Para quem entende o cérebro preditivo como o paradigma que hoje organiza grande parte da neurociência, esta coexistência pode soar contraditória.

Na verdade, trata-se de uma diferença de nível descritivo. Quando Zmigrod fala em “ameaça” ou “medo”, parece referir-se não a emoções discretas e universais, mas a programas defensivos e afetivos: padrões neurobiológicos de sobrevivência que antecedem qualquer rótulo emocional. A autora descreve, por vezes, um reflexo de defesa e chama-lhe “medo”, o que é compreensível na divulgação científica, mas teoricamente distinto. O que se ativa é o mecanismo de regulação corporal, não a emoção já rotulada.


“O corpo reage antes de sabermos o que sentimos.”

Essa distinção é central nas teorias construtivistas da emoção (como a de Lisa Feldman Barrett), que partem do mesmo princípio preditivo que Zmigrod adota: o cérebro não deteta emoções, constrói-as. O que chamamos “raiva”, “medo” ou “nojo” é o nome que damos, a posteriori, a um conjunto de inferências sobre o estado corporal e o contexto social. Sob essa lente, a “ameaça” que molda crenças ideológicas não é uma emoção específica, mas uma inferência preditiva de perigo - uma forma de o cérebro minimizar incerteza.

Assim, mais do que contradição, o livro revela uma tensão de linguagem: a autora comunica em termos universais o que, em rigor teórico, é um processo de construção emocional e cognitiva contínua. Uma clarificação nesta ponte entre cognição, emoção e predição tornaria a obra ainda mais consistente.


“A mente ideológica é uma mente que teme o erro.”

O contributo de Leor Zmigrod é, ainda assim, inquestionável. Ao evidenciar que a rigidez cognitiva prediz dogmatismo ideológico - independentemente do conteúdo das crenças -, a autora oferece uma chave científica para compreender a polarização contemporânea. O que distingue o extremista não é tanto a ideologia que defende, mas a estrutura mental com que a defende.

É uma lição que vale tanto para a política como para o direito: onde há aversão à ambiguidade, tende a surgir punição moral rápida, certeza prematura e resistência à revisão - precisamente os vieses que o sistema de justiça deve conter, e não reproduzir.


“Treinar a dúvida é treinar a humanidade.”

Em suma, O Cérebro Ideológico é uma obra de grande mérito científico e didático. Bem escrita, sustentada em dados empíricos e fiel ao espírito do método experimental, ajuda a compreender por que motivo o extremismo é, antes de mais, um produto da arquitetura cognitiva e das suas estratégias de simplificação. O pequeno desencontro entre o cérebro preditivo e a teoria emocional clássica não diminui o valor da obra - apenas mostra o quanto a neurociência contemporânea se encontra em transição entre dois paradigmas: o cérebro que reage e o cérebro que prevê.

Leor Zmigrod


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