O Cérebro que Julga Sentindo: Como Lisa Feldman Barrett Reconstruiu as Emoções e Desafiou os Tribunais em How Emotions Are Made

Lisa Feldman Barrett — a cientista que ensinou os tribunais a pensar o sentir

Lisa Feldman Barrett é uma das mais influentes neurocientistas e psicólogas cognitivas do mundo contemporâneo. Professora da Northeastern University, investigadora do Massachusetts General Hospital e da Harvard Medical School, é membro da National Academy of Sciences dos Estados Unidos e autora de mais de 250 artigos científicos citados dezenas de milhares de vezes - um número que a coloca entre o 1% de cientistas mais citados globalmente. O seu trabalho influenciou decisivamente não apenas a neurociência, mas também o direito, a psicologia forense e a filosofia da mente.

Em tribunais federais norte-americanos, o seu nome surge com frequência nas notas de rodapé de juízes e pareceres amicus curiae, em particular quando estão em causa a fiabilidade dos testemunhos emocionais, a avaliação de comportamentos impulsivos e a fronteira entre emoção e racionalidade na imputação penal. Juízes como Jed S. Rakoff - referência no debate sobre ciência e justiça - e Nancy Gertner (ex-Juíza Federal) reconheceram publicamente o contributo da autora para compreender a natureza construída das emoções e a falibilidade da intuição judicial sobre “expressões faciais” ou “reações emocionais” dos arguidos e testemunhas.


A tese central: as emoções não são universais, são construções do cérebro

Em How Emotions Are Made (2017), Barrett desfaz um dos dogmas fundadores da psicologia e das ciências jurídicas tradicionais: a ideia de que as emoções são reações biológicas universais, fixas e reconhecíveis — a chamada “teoria clássica das emoções”, que remonta a Darwin, William James e, mais recentemente, Paul Ekman.

Barrett demonstra, com base em décadas de investigação de neuroimagem, análise computacional e estudos interculturais, que não existe um conjunto de circuitos neuronais específicos para cada emoção, nem “assinaturas faciais” invariáveis que traduzam raiva, medo ou tristeza. Em vez disso, o cérebro humano funciona como um sistema preditivo que constrói as emoções com base na experiência passada, no contexto e nas necessidades do corpo (interocepção).

Deste modo, as emoções não são reações, mas invenções momentâneas do cérebro, destinadas a otimizar a ação e o equilíbrio fisiológico. O que chamamos “raiva” ou “medo” é uma categorização aprendida culturalmente, uma hipótese que o cérebro formula para dar sentido ao que sente e vê - e que pode variar radicalmente entre indivíduos e culturas.


O cérebro preditivo e o erro judicial: sentir é uma inferência, não uma verdade

O modelo proposto por Barrett assenta na teoria do cérebro preditivo (predictive coding), próxima dos trabalhos de Karl Friston. O cérebro não reage ao mundo, mas antecipa-o - minimizando o “erro de previsão” entre o que espera e o que de facto ocorre.

Assim, uma expressão facial, um tom de voz, ou um gesto não revelam automaticamente o estado emocional de alguém. O observador - incluindo o juiz, o jurado ou o polícia - atribui significado emocional com base nas suas próprias expectativas, experiências e preconceitos. Esse processo é invisível, automático e enviesado.

As implicações jurídicas são devastadoras: a crença de que se pode “ler” emoções é ilusória. Julgar a sinceridade de um depoimento pelo choro, pela rigidez corporal ou pelo olhar desviado é confiar num sistema perceptivo altamente falível. Barrett demonstra experimentalmente que a mesma expressão pode ser rotulada de “raiva” ou “tristeza” conforme o contexto e as crenças do observador.

Esta constatação tem já eco em pareceres judiciais e estudos forenses que invocam Barrett para afastar práticas pseudocientíficas de “análise comportamental” - como o facial coding ou os truth-wizards da deteção de mentira - por ausência de validade empírica.


Relevância jurídica: emoção, culpa e a ficção da racionalidade

O impacto da teoria construtivista de Barrett na esfera judicial vai além da prova testemunhal. Questiona o próprio modo como o Direito concebe a imputabilidade e o juízo de culpa.

Se as emoções são construídas pelo cérebro a partir de experiências prévias, contextos fisiológicos e culturais, o controlo emocional não é uma variável binária, mas um contínuo neurobiológico. A distinção entre ato racional e ato emocional - ainda dominante em muitos acórdãos - é um artefacto conceptual que a neurociência não confirma.

Como observa Barrett, “não existem circuitos para o raciocínio separados dos da emoção”. O cérebro é um órgão integrado que avalia custos, riscos e contextos corporais antes mesmo da consciência deliberada. Assim, a imputação moral e penal deve ser revista à luz desta integração: o que o direito chama “intenção” ou “dolo” pode muitas vezes refletir modelos preditivos do cérebro que se formaram em contextos de stress, trauma ou privação - hipóteses neurocognitivas que não foram escolhidas, mas herdadas e reforçadas por aprendizagem.


Uma ciência do sentir para um direito mais humano

Barrett não propõe um relativismo emocional, mas uma visão mais precisa e empática da mente humana. A justiça, se quiser ser racional, precisa compreender que o cérebro é um construtor de significados, e não um leitor passivo da realidade.

Nos tribunais, isso significa reconhecer a fragilidade das interpretações emocionais e valorizar mais a prova empírica, contextual e interdisciplinar. No campo penal, significa entender que a gestão emocional - ou a sua falha - não é sinal de maldade inata, mas de aprendizagem biológica moldada por circunstâncias de vida.

Como escreveu Barrett, “a emoção é uma ferramenta do cérebro para gerir a vida, não uma janela para a alma”. A maturidade jurídica consistirá, talvez, em aceitar esta humildade científica.


Consideração crítica e relevância doutrinária

How Emotions Are Made representa uma rutura epistemológica comparável à que António Damásio inaugurou com O Erro de Descartes, mas com um impacto ainda mais direto sobre a prova judicial e a imputação moral. A autora substitui o essencialismo emocional por uma teoria dinâmica, probabilística e culturalmente situada, abrindo espaço a uma compreensão mais complexa da responsabilidade.

Para o jurista, o livro é leitura obrigatória: obriga a repensar o testemunho, a confissão, a avaliação do arrependimento e até o conceito de “intenção criminosa”. O seu diálogo com Friston, Barrett, Pessoa e Sapolsky desenha um novo horizonte para o direito penal e para a psicologia forense - um horizonte em que a justiça deixa de punir reações para compreender previsões.


Mais publicações deste âmbito e de outros em Reasonable Doubt 


Comentários

Mensagens populares deste blogue

Os Sentidos Invisíveis: porque continuamos a acreditar em Aristóteles e como o cérebro moderno nos mostra que o Mundo é muito mais do que cinco portas de entrada

A Impossibilidade de Uma Só Natureza Humana: Variação é a Norma

Portugal, o País do Respeitinho: Quando a Crítica É Crime