O Mundo Misterioso da Memória — Charan Ranganath (2024) - Síntese crítica e implicações forenses
Nota biográfica
Charan Ranganath é professor de Psicologia e Neurociência Cognitiva na Universidade da Califórnia em Davis, onde dirige o Dynamic Memory Laboratory, um dos centros mais reputados na investigação sobre os mecanismos cerebrais da memória. O seu trabalho combina neuroimagem funcional, psicologia experimental e modelação computacional para compreender como o cérebro codifica, armazena e recupera experiências. Colabora com instituições como o National Institute of Mental Health e é autor de dezenas de artigos científicos nas revistas Nature Neuroscience, Neuron e PNAS, sendo hoje uma das principais autoridades mundiais no estudo da memória episódica.
1. A memória como processo dinâmico, não como arquivo
Em O Mundo Misterioso da Memória (Why We Remember, título original, 2024), Ranganath desconstrói um dos equívocos mais persistentes da cultura jurídica e popular: a ideia de que a memória humana funciona como um repositório estático, um “disco rígido” que armazena factos. A memória, demonstra o autor, não é uma gravação do passado, mas uma reconstrução ativa e previsiva do cérebro, permanentemente sujeita a distorções motivadas por emoção, contexto e expectativa.
As memórias são moldadas pela atenção e pelas emoções vividas no momento da experiência, mas sobretudo pela forma como são recuperadas. Cada evocação modifica subtilmente a recordação — um fenómeno designado reconsolidação —, de modo que recordar é também reescrever. Essa plasticidade, que serve a adaptação e a aprendizagem, é, contudo, a origem de muitos dos erros de reconhecimento e das falsas memórias testemunhais.
2. O papel do hipocampo e do córtex pré-frontal na reconstrução
Ranganath baseia a sua explicação em evidência neurobiológica sólida: o hipocampo atua como integrador contextual, ligando fragmentos dispersos (pessoas, lugares, ações) em narrativas coerentes; o córtex pré-frontal seleciona, organiza e interpreta essas informações segundo objetivos atuais. Assim, o que o cérebro “recorda” não é tanto o passado em si, mas a versão do passado que melhor serve o presente.
Esta noção é de enorme importância para o Direito probatório: significa que a confiança subjetiva de uma testemunha não é indicador fiável da sua exatidão, já que a convicção decorre de mecanismos emocionais e não da verificação factual. Como escreve o autor, “a certeza que sentimos é muitas vezes apenas a familiaridade que o cérebro gera quando uma história parece fazer sentido”.
3. Emoção, motivação e o enviesamento da recordação
As memórias emocionais — frequentemente valorizadas em tribunal — são paradoxalmente mais vívidas, mas menos fiéis. A amígdala reforça a codificação do aspeto emocional, mas não garante a precisão factual. Assim, acontecimentos traumáticos, acidentes ou crimes violentos são mais propensos a gerar distorções: o foco atencional estreita-se sobre elementos centrais (a arma, o rosto, o som), sacrificando detalhes periféricos.
Ranganath cita experimentos que mostram como a motivação molda a recordação: quando desejamos que algo seja verdade, o cérebro reorganiza os factos de modo a alinhar-se com essa narrativa. Daí que, em contexto de inquérito, perguntas sugestivas, feedback policial ou simples repetição de entrevistas possam cristalizar versões alteradas como se fossem verdadeiras.
4. Implicações jurídicas: a falibilidade do testemunho humano
A síntese de Ranganath converge com décadas de investigação — de Elizabeth Loftus a Julia Shaw — ao reafirmar que a prova testemunhal deve ser tratada com prudência científica e não com reverência moral. O autor é particularmente claro ao advertir que a memória é sempre uma hipótese sobre o passado, construída por um cérebro que procura coerência e não verdade.
Desta perspetiva, o testemunho humano não deve ser avaliado pelo seu tom de convicção, coerência ou emoção, mas antes pela análise das condições cognitivas e contextuais da sua formação:
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tempo decorrido entre o evento e o depoimento;
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número e tipo de entrevistas;
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existência de perguntas sugestivas ou de reforço emocional;
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eventual exposição mediática ou conversas com terceiros.
Em termos processuais, a leitura do livro reforça a necessidade de que os tribunais incorporem protocolos científicos de avaliação da prova testemunhal, inspirados em práticas já seguidas no Reino Unido, Canadá e Holanda, onde se reconhece judicialmente a possibilidade de falsas memórias.
5. Entre a neurociência e o direito: por uma epistemologia da dúvida
Ranganath não pretende deslegitimar a memória, mas reabilitá-la enquanto função adaptativa: “Recordamos para prever, não para arquivar.” A lição é epistemológica e, por extensão, jurídica: o valor da dúvida não é um obstáculo à justiça, mas a sua mais alta forma de racionalidade.
Num sistema de prova fundado no princípio in dubio pro reo, o contributo da neurociência é clarificar que a dúvida não é mera hesitação moral — é o reconhecimento científico de que o cérebro humano, por natureza, reconstrói mais do que reproduz.
Conclusão
O Mundo Misterioso da Memória é um livro de leitura acessível mas de rigor invulgar, que deve ser considerado texto de referência para magistrados, advogados e peritos forenses.
A sua principal mensagem — de que lembrar é sempre reinterpretar — exige que a justiça abandone a ideia intuitiva de que ver é saber e lembrar é provar.
“O passado vive apenas como previsão do futuro” — escreve Ranganath.
A justiça, se quiser ser ciência e não fé, deve aprender a lidar com esse facto.
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